Financiado por empresários franceses e escavado por mais de 30 mil semiescravos entre 1860 e 1869, o Canal de Suez se revelou decisivo na consolidação da dominação do Reino Unido sobre o Oceano Índico e o subcontinente indiano, ameaçada pela ascensão da Rússia e de seus rivais europeus.
Essa aliança entre capitalismo industrial e expansão imperial liderou uma aceleração sem precedentes da circulação de capital e tecnologia. Inovações como o telégrafo e o navio a vapor surgiram do desenvolvimento dos portos e das rotas marítimas. Até hoje, a história de Suez, com suas raízes napoleônicas, alimenta a mitologia da indústria francesa.
No começo do século 20, a indústria petrolífera se organizou em torno do Canal de Suez. Foi para maximizar o aproveitamento da infraestrutura que a Shell desenvolveu os primeiros petroleiros modernos. Entre 1910 e 1960, esses navios representaram 82% da circulação do canal, o novo eixo comercial entre a Europa e o Oriente Médio.
Quando o líder egípcio Gamal Abdel Nasser avançou para a nacionalização da via, em 1956, ele provocou involuntariamente uma troca de guarda entre potências globais. Conduzido pelo premiê Anthony Eden, herói da Segunda Guerra Mundial convertido em coveiro do império, o processo fez Londres passar vergonha em Suez.
Os Estados Unidos aproveitaram o momento de fraqueza para travar um empréstimo do FMI e acrescentar à crise militar britânica um colapso financeiro. Ironicamente, o canal de Suez celebrou o seu centenário com o desmoronamento da influência geopolítica da Europa.
O bloqueio de quase oito anos depois da Guerra de Seis Dias (1967), que transformou Suez em um campo de batalha, provocou a retirada dos atores europeus. Industriais atualizaram os petroleiros, e as potências pós-coloniais investiram em reservas petrolíferas na África do Norte e Ocidental para se emanciparem da região, vista como cronicamente instável.
Reaberto em 1975, o canal iniciou um novo processo de transição da economia global. Suez viu desfilar os navios orientais que inundaram o Reino Unido com as mercadorias que tanto contribuíram para a obsolescência do seu tecido industrial.
Em 2016, ano do brexit, a manufatura passou a representar meros 9% da força de trabalho britânica contra 32% em 1973. O canal de Suez virou o símbolo da dependência europeia em relação à Ásia.
Isso explica por que, na semana passada, quando o equivalente global do caminhão que tomba na marginal Tietê parou a internet, analistas exaltaram a vulnerabilidade do comércio internacional.
Das peças das turbinas da Rolls Royce ao prato ilustrado com a foto do príncipe Harry que tem lugar de destaque no salão da idosa recém-vacinada de Chestershire, tudo —e o seu contrário— transita por Suez, eterno sustentáculo do capitalismo moderno.
Em tempos de euforia sobre uma nova era industrial mais bairrista e verde, o impasse provocado pelo atolamento do Ever Given serve para nos avisar que as nossas sociedades continuarão se apoiando em estruturas incrivelmente arcaicas por muito mais tempo do que o desejado.
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