Ainda é cedo para retrospectivas, mas um dos momentos mais importantes da cobertura jornalística do governo Bolsonaro foi a decisão de alguns veículos, como Folha, UOL e Globo, de não acompanhar mais as interações do presidente com seus apoiadores no chamado cercadinho do Palácio do Alvorada.
Com um presidente desde sempre hostil à imprensa, não tardou para que os seus apoiadores elevassem a temperatura do ambiente, ampliando a sensação de insegurança dos repórteres destacados para a missão diária.
A decisão foi tomada em 25 de maio de 2020. Quarenta e dois dias antes, num dos comícios de Bolsonaro no cercadinho, um apoiador havia perguntado ao presidente o que ele achara de uma entrevista do então ministro Luiz Henrique Mandetta ao Fantástico. "Eu não assisto à Globo", respondeu Bolsonaro, gerando aplausos e um vídeo que viralizou entre os apoiadores.
Em depoimento nesta semana aos jornalistas Gabriela Biló e Ranier Bragon, da Folha, o autor da pergunta afirmou que foi pago por um site bolsonarista para fazer aquela pergunta. No mesmo dia, ele recebeu uma transferência bancária no valor de R$ 1.100 feita pelo site que o teria contratado.
O episódio só reforça a constatação de que as falas de Bolsonaro são pensadas não em termos de comunicação pública, mas de incitação aos fãs. Com frequência, frases, gestos e discursos do presidente não têm o objetivo de esclarecer, mas de manter apoiadores em estado de excitação.
Ao ignorar as manifestações ao vivo no teatro do cercadinho, parte da mídia cortou o fio de transmissão e deixou de reverberar ao vivo, involuntariamente, parte dos recados presidenciais.
A tarefa sempre foi muito mais complicada, porém. Bolsonaro contou nestes anos todos com vários canais de TV aberta dispostos a serem intermediários das suas bravatas, ameaças e mensagens a adversários e supostos inimigos.
Sob o argumento de que a cobertura jornalística dos atos do presidente é obrigatória, várias emissoras se dispuseram ao papel de "ouvido", abrindo o microfone para declarações que tinham a intenção basicamente de ampliar a confusão.
Nesta semana, por exemplo, após um discurso eleitoral na sacada da residência do embaixador do Brasil em Londres, Bolsonaro deu uma entrevista ao site SBT News. A intenção pareceu ser dizer só uma frase: "Se nós não ganharmos no primeiro turno, algo de anormal aconteceu dentro do TSE". Após ouvi-la, o repórter disse: "Presidente, quer falar mais alguma coisa?".
Nestas eleições, Bolsonaro transformou atos de governo em comícios. Foi assim no Sete de Setembro e, nesta semana, em Londres e na Assembleia-Geral da ONU, em Nova York.
A transmissão ao vivo do discurso no Dia da Independência levou a GloboNews a uma interessante reflexão interna. "Quem falou foi o Bolsonaro candidato. Ele falou algumas barbaridades exatamente para nós comentarmos", registrou, ainda no ar, o comentarista Fernando Gabeira.
A lição foi relembrada nesta semana —e o canal de notícias da Globo foi o único a não transmitir ao vivo o discurso eleitoral feito pelo candidato à reeleição na tribuna da ONU.
O exemplo vem dos Estados Unidos, no que a imprensa batizou de "Trump unplugged". Diante da resistência do então presidente em reconhecer a derrota eleitoral em 2020 e insistir, falsamente, que houve fraude, diferentes canais, incluindo redes sociais, cortaram a sua voz em tempo real.
Censura? Ou esforço para manter a democracia viva?
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.