Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Mauro Calliari

Ouro Preto, a poderosa experiência de caminhar numa cidade que desafia a topografia e a história

Na era de Trip Advisor e Booking, não se fazem mais guias como antigamente

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Andar a pé

Enquanto os turistas tropeçam e bufam nas ladeiras, os locais se inclinam e seguem em frente, num ritmo calmo, mas firme. Poucas são as ruas que seguem as curvas de nível, mas quando se encontra uma, há que segui-la, pelo prazer de driblar a gravidade.

De noite, quando as lojas, igrejas e museus fecham, quando as vans vão embora e só há gente ao redor dos bares, surge o raro prazer de ouvir seus próprios passos ecoando nas paredes de 300 anos. É o suficiente para embalar pensamentos originais, que só surgem ali e ali permanecem.

Público acompanha o festival Tudo É Jazz no palco do Largo do Rosário, em Ouro Preto, com uma igreja no pé de uma ladeira
Público acompanha o festival Tudo É Jazz no palco do Largo do Rosário, em Ouro Preto - Ane Souz - 8.ago.22/Folhapress

A cultura de Minas nasceu urbana

A rede de cidades que surgiu com a mineração é um contraste com o Brasil das raízes rurais. É uma estranha configuração urbana, em que as aglomerações pontuam no vazio. Ao redor das cidades do ouro e do diamante, as montanhas peladas de qualquer produção agrícola. Dentro das cidades, um espaço denso, diverso, em que a cultura urbana se enraizou com sua poesia, sua música, as festas religiosas, as bases para a contestação política da insurreição mineira sufocada no nascedouro.

O ouro preto e o ouro branco. A riqueza que vai embora

Sob a pedra do Itacolomi, um homem desceu ao córrego e tirou uns granitos negros. Só quando o governador do Rio de Janeiro trincou as pedras nos dentes, descobriu-se que era ouro de 23 quilates. Nada a ver com o ouro branco, que dá nome à cidade mais próxima, este pálido e de pouco rendimento.

Chama a atenção o quão rápido foi o ciclo de extração das riquezas da terra. O chamado do ouro atrai 30 mil pessoas em poucos anos, a riqueza vai para Portugal, o ouro local enriquece poucos, o que fica vai para os painéis de igrejas e para dinamizar a economia das cidades que se transformam e definham rapidamente.

A mais simbólica das construções não religiosas é a Casa dos Contos. Ali, se materializa a interferência da coroa. A partir de 1719, todo ouro deveria passar por ali, com a dedução dos 20% (o quinto). Parte das taxas era destinada, explicitamente para os ‘alfinetes da rainha’.

Vila Rica nasce da rede de pequenos arraiais, vira cidade em 1711, muda de nome para Ouro Preto em 1723, atinge seu pico de produção de ouro já entre 1725 e 1750, constrói igrejas, casas e palácios durante a segunda metade do século 18 e... Congela durante o século 19. A tal ponto que em 1897, os mineiros decidem construir uma nova capital, Belo Horizonte, desentravada das ladeiras, dos gargalos e das dificuldades logísticas.

A viagem dos modernistas

Em 1924, Mario e Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e o poeta suíço Blaise Cendrars partem para Minas e voltam encantados com o que chamaram da ‘redescoberta’ do Brasil, de Aleijadinho e do barroco. Anos depois, Mario sugere ao ministro da Educação e Saúde que crie um órgão para cuidar da preservação da memória do país. Logo depois, surge o Sphan, que hoje é o Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico Nacional. Até então, não havia sequer um mapeamento do patrimônio histórico brasileiro. Em 1933, Ouro Preto é declarada "monumento nacional".

Na era de Trip Advisor e Booking, não se fazem mais guias como antes

Em 1933, o poeta Manuel Bandeira foi convidado para escrever sobre a cidade. O "Guia de Ouro Preto", relançado e disponível em todas as duas ou três livrarias de Ouro Preto, é uma preciosidade.

O texto límpido do autor de "Vou-me embora pra Pasárgada" navega pelas minúcias da arquitetura de cada obra mas não se furta a um olhar geral. Ele conta a péssima impressão que o descaso deixou em visitantes estrangeiros. Mas atribui à falta de desenvolvimento a possibilidade de preservar o patrimônio.

"Ouro Preto conservou, mercê de sua pobreza, uma admirável unidade. De todas as nossas velhas cidades é ela talvez a única destinada a ficar como relíquia inapreciável do nosso passado". Há até os detalhes práticos para os turistas: "Quem vem de São Paulo de trem, baldeia em Barra do Piraí". Não dá mais para vir de trem de São Paulo ou do Rio, mas o trem turístico entre Ouro Preto e Mariana permite constatar a difícil convivência entre homens e morros.

As mudanças e as permanências

Com o turismo, a cidade mudou, mas não perdeu a impressionante aura colonial. Construções mudam de uso, hotéis e pousadas ocupam casarões, surgem restaurantes, lojas de bugigangas, igrejas pentecostais e museus. O Palácio dos Governadores virou a Escola de Minas, com seus estudantes que transformam casas velhas em repúblicas. A maior ousadia talvez tenha sido o Grande Hotel, uma obra de Oscar Niemeyer que assimila o colonial e não se impõe em relação ao resto da cidade. Num país em que o passado é tragado costumeiramente pelo moderno, é um alívio constatar que o perfil da cidade ainda é demarcado pelos telhados do casario, pelos morros e pelas torres das igrejas.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.