Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Mauro Calliari

O que é o 'housing first', que inspirou o programa Reencontro

Será que num futuro próximo ou distante dá para imaginar uma cidade sem pessoas morando nas ruas?

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A Vila Reencontro, no Canindé, é uma iniciativa tão interessante que achei que valia como tema para a última coluna do ano e inspiração para o ano que vem. É um projeto inaugurado há uma semana pela Prefeitura de São Paulo para acolher famílias em situação de rua. Minha visita, na última quinta-feira do ano, coincidiu com o momento em que duas famílias estavam chegando. Deu para ver a satisfação dos adultos e a alegria das crianças se instalando no local.

O conceito que inspirou o Reencontro é o "housing first" (Moradia em primeiro lugar), uma ideia que anda crescendo em várias cidades ao redor do mundo, como Viena, Helsinki ou Salt Lake City, nos EUA. A ideia é oferecer moradia a quem não tem rapidamente, sem submeter a pessoa a uma escadinha, como era feito antes. Antes, quem estava em situação de rua ia para um centro de acolhida, depois uma moradia provisória e só depois que provasse estar apta a gerenciar sua vida ganharia a possibilidade de morar em um lugar fixo. O "housing first" inverte esse conceito. Se é casa que falta, é casa que se oferece e, aí partir daí, acredita-se que a pessoa possa ter muito mais condições de ir atrás de emprego e construir uma rede de relações.

Playground com casa ao fundo
Casas e área de lazer da Vila Reencontro na região do Canindé, centro de São Paulo; iniciativa da prefeitura abriga pessoas em situação de rua - Arquivo pessoal

Se o conceito é bom, a execução é ainda mais importante. Na visita ao local, achei a experiência muito promissora. As moradias são pequenas, mas dignas e limpas. Em 18 metros quadrados, cabem até quatro camas, cozinha com geladeira e um fogãozinho, um banheiro e uma pequena varandinha que serve de entrada. Tem ventilador no teto que eu imagino vá ser muito usado em dias de calor. Ao redor das casas azuizinhas, há espaço para uma área de circulação, parquinho para as crianças e uma horta. Cozinha e lavanderia são coletivas.

A gestão do lugar vai ficar por conta de uma ONG, AVSI (Associação Voluntários para o Serviço Internacional) com acompanhamento da Assistência Social da prefeitura. São até 22 pessoas se revezando para fazer essa pequena comunidade funcionar. Conversando com as assistentes sociais no local aprendi que eles vão dar apoio para que os moradores se organizem na gestão coletiva, desde decisões relativas à vivência em grupo até a distribuição de comida.

Bem, a prefeitura já tem dezenas de iniciativas para lidar com o acolhimento de pessoas sem teto. O que faz pensar que esse projeto tenha mais potencial de transformação é o jeito com que foi concebido.

Primeiro, vem a casa.

No lugar de um abrigo coletivo e despersonalizado, o projeto começa os apartamentos, ou minicasinhas, planejadas para ajudar as pessoas em situação de rua a experimentar a ideia de gerir um lar.

Depois, tem uma noção chamada "saída qualificada".

Em até dois anos, espera-se que os moradores aprendam um ofício e sejam capazes de se inserir no mercado de trabalho. Há um ecossistema sendo pensado para envolver moradores da região, empresários e uma rede de voluntários para garantir que as crianças estejam saudáveis e na escola e os adultos possam se capacitar, encontrar um emprego e, idealmente, sair de lá com uma possibilidade de não voltar para a rua.

Fica, então, a dúvida de quanto esse modelo é replicável.

Há terras disponíveis para outros empreendimentos?

A prefeitura, governo estadual e o federal têm terra e propriedades vazias sobrando na cidade. No próprio local da implantação da primeira unidade do projeto, chamada Reencontro Cruzeiro do Sul, havia um terreno enorme, de mais de 30 mil metros que acomodava um clube da extinta CMTC. Dois campos de futebol e duas piscinas, cancha de bocha, tudo abandonado com espaço sobrando há anos. Tudo isso vai dar lugar a um total de 270 moradias. Outras duas unidades, no Anhangabaú e na avenida do Estado também vão surgir em 2023.

Dá para multiplicar a experiência em outros lugares com o mesmo grau de atenção?

Como em qualquer aglomeração de humanos, há os conflitos no dia a dia, haverá famílias que trarão suas disfuncionalidades, há a falta de base comum entre os participantes e a carência de educação e profissão. A cola do projeto parece estar na atuação da AVSI e principalmente na supervisão do pessoal da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. As assistentes sociais hoje estão divididas por setores na cidade e fazem um trabalho inacreditável. Eles abordam cada morador de rua, fazem perguntas, tentam encaminhar para um abrigo ou médico, orientam, organizam distribuição de comida e remédios. A escala disso é tão gigante que parece não haver luz no fim do túnel, mas são essas pessoas que podem garantir que uma experiência como essa possa ser replicada.

Finalmente, há dinheiro para isso?

No momento em que discutimos transporte gratuito, duplicação de período de aulas para estudantes e ampliação do sistema de saúde, vale a pena incluir no restrito grupo de prioridades o combate a essa chaga que envergonha a cidade e degrada a vida de milhares de seus habitantes; o fato de termos 35 mil pessoas morando nas ruas de São Paulo.

Como é difícil que alguém se comprometa com números, me permiti fazer algumas contas imperfeitas. Segundo a prefeitura, o custo de construção dessa primeira etapa do projeto ficou em torno de R$ 3 milhões, ou aproximadamente 75 mil por unidade para quatro pessoas. O custo mensal com alimentação e manutenção é R$ 2.000 por pessoa. Assim, numa conta rápida, replicar isso para as 35 mil pessoas em situação de rua de São Paulo ficaria em torno de R$ 850 milhões por ano. Se tirarmos da conta as 19 mil vagas já existentes em abrigo, o total ficaria em R$ 300 milhões para construir e mais R$ 384 milhões pela manutenção do programa, por ano. Ok, ok, sempre haverá uma parcela de pessoas que se recusa a participar, os custos mudam por região, etc. etc., mas técnicos terão toda a condição de fazer a conta direitinho.

A ideia é apenas mostrar que a discussão não é absurda e que o assunto poderia merecer prioridade na discussão do orçamento da cidade, que vai chegar a mais de R$ 95 bilhões em 2023.

Quanto vale a utopia de imaginar uma cidade sem pessoas morando na rua?

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