Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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A comovente e perigosa caminhada dos peregrinos na Via Dutra

O que faz com que milhares de pessoas decidam ir a pé até Aparecida, enfrentando calor, barulho e o risco de atropelamento?

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Às vésperas do feriado de Nossa Senhora de Aparecida, os romeiros tomam a Via Dutra.

Em grupos ou em pares, em excursões organizadas ou sozinhos, o hábito de ir a pé até Aparecida está aumentando ano a ano. Em 2017, eram 10 mil. Em 2023, serão 50 mil.

Eu passei de carro pela via Dutra na semana passada e vi centenas de romeiros andando no acostamento nos dois lados da rodovia. Muitas portam um cajado. A maioria usa chapéu e coletes com cores vivas para serem vistas.

Milhares de romeiros caminham todos os anos na Via Dutra rumo ao Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida
Milhares de romeiros caminham todos os anos na Via Dutra rumo ao Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida - Eduardo Knapp - 12.out.17/Folhapress

O que faz uma pessoa enfrentar o sol, a chuva, o cansaço, o barulho dos carros e o perigo real de um atropelamento?

A peregrinação cristã vem desde os primeiros séculos da nossa era e se afirmou na Idade Média como um ritual de purificação, de agradecimento por uma graça, de penitência por um crime ou uma prova de fé.

"O cansaço purifica, destrói o orgulho", diz o filósofo Frederic Gros sobre os peregrinos. Para ele, a peregrinação implica na perda da vaidade, pois o andarilho se despe de tudo o que é supérfluo e se concentra no ato mais básico do homem, andar.

Caminhar nas estradas medievais era perigoso. O auto do livro "A History of Walking" ("Uma História de Caminhada"), Joseph Amato, estima que metade dos peregrinos era roubado ou assassinado em seus trajetos. Tão comum eram os crimes que a pessoa era obrigada a fazer um testamento antes de partir em peregrinação.

Companheiro, é nossa obrigação caminhar, sem nos demorarmos

canto do peregrino do Caminho de Santiago de Compostela

Espanha

Jerusalém e Roma eram os principais destinos até que Santiago de Compostela começou a atrair cada vez mais pessoas, num roteiro mais seguro e mais organizado, com paradas protegidas, cidades acolhedoras e um roteiro que valorizava tanto o destino como o próprio caminho.

Aliás, Paulo Coelho é um dos responsáveis pelo sucesso contemporâneo do caminho, desde a publicação de seu best-seller "O Diário de um Mago", de 1987, traduzido em 150 países.

Hoje, há outros grandes centros de peregrinação no mundo, como o circuito de 1.200 quilômetros na ilha de Shikoku, no Japão, que passa por 88 templos budistas, começando e terminando no mesmo lugar. A rota da Misericórdia é a mais longa, com seus 1.770 quilômetros entre Viena, na Áustria, e Cracóvia, na Polônia.

O caminho até Aparecida do Norte conta com o apoio de voluntários que organizam tendas com bebidas geladas e sanduíches, mas tem seus perigos. Neste ano, já houve seis atropelamentos e um homem morreu.

Existem outras alternativas sem tanto barulho e fumaça. A Rota da Luz sai de Mogi das Cruzes, o Caminho de Aparecida sai de Alfenas e o Caminho da Fé junta outros ramais a partir de Águas da Prata. A Secretaria de Turismo de São Paulo tem também a ideia de construir uma trilha ao longo do Rio Paraíba. Além de mais seguros, talvez tragam aos caminhantes cansados a chance de pensar mais profundamente em suas vidas e suas provações.

De qualquer modo, é comovente ver as pessoas num mundo tão cheio de estímulos como o nosso desligando-se por alguns dias da vida cotidiana e, principalmente, escolhendo os pés e o cansaço para buscarem as suas verdades.

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