Para desbravar os Caminhos de Santiago, não é preciso ser atleta

Ampla rede facilita a vida do peregrino em roteiros que passam em catedrais, vilarejos e ruínas

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Santiago de Compostela

​Deitados ao chão, encostados às pilastras, os peregrinos fazem do centro histórico de Santiago de Compostela, patrimônio da humanidade e capital da Galícia, no noroeste da Espanha, um espaço de contemplação.

Os nove caminhos reconhecidos para chegar até ali estão marcados na praça do Obradoiro, vindos dos quatro cantos e que se unem ao centro pela última concha de vieira, símbolo que guia os peregrinos em toda a jornada.

O clima é de felicidade. Há quem arrisque uma pose triunfal, erguendo a bicicleta aos céus, ou faça do cenário palco para um pedido de casamento, arrancando sorrisos nos olhos e lábios.

Mas a estrela nesse cenário é mesmo a exuberante Catedral de Santiago, construída a partir de 1075, uma mescla de estilos arquitetônicos por fora e por dentro, onde está a cripta em que Santiago, discípulo de Jesus e padroeiro da Espanha, está sepultado. A visita é arrebatadora.

Uma grande catedral, diante de um dia claro, com a luz despontando por trás dela em meio ao céu azul
A Catedral de Santiago de Compostela, destino do Caminho de Santiago - Géssica Brandino/Folhapress

No século 9, quando começou a peregrinação para chegar ali e venerá-lo, a travessia era repleta de percalços e, para muitos, sinônimo de sacrifício.

Mil e duzentos anos depois, há uma ampla rede especializada para facilitar a vida do peregrino e serviços como o transporte de bagagem ao custo de 4 euros (R$ 21) via correio, além de várias possibilidades de trilhar o percurso: a pé, de bike, a cavalo, de trem ou de barco.

Até mesmo quem não é atleta de carteirinha tem vez e pode parcelar as etapas rumo a Santiago de acordo com o tempo disponível. Aos caminhantes, ter uma margem de dias para imprevistos é aconselhável.

O primeiro itinerário cultural da Europa é um queridinho dos brasileiros, o décimo país com mais peregrinos a Santiago em 2019 e único representante da América Latina no top 10. Naquele ano, mais de 347 mil pessoas peregrinaram até ali, a maioria a pé, por motivos religiosos e outros muitos.

No Xacobeu, ou Ano Jacobeu, quando o 25 de julho, dia de Santiago, cai em um domingo, o percurso ganha ares ainda mais especiais.

Além de vários eventos, nele a porta santa da Catedral de Santiago se abre e os peregrinos devotos podem pedir a indulgência plenária, o perdão de todos os pecados.

Com a pandemia, pela primeira vez o Xacobeu é celebrado em dois anos, 2021-2022, e vale aproveitar as temperaturas da primavera europeia, que se estende até 20 de junho.

O Caminho Francês, o mais famoso dos percursos e patrimônio da humanidade, oferece um passeio ao longo dos séculos que tem como marco inicial a medieval Saint Jean Pied de Port, no sudoeste da França.

Partindo dali são 777 km trilhados em 33 dias, mas, se quiser um atalho mais próximo a Madri, comece pela charmosa Burgos, o que diminui em 12 dias a jornada.

A partir de lá se prepare para um trajeto em que o silêncio é rompido pelo cantar dos pássaros, os campos verdes seguem a perder de vista e os plátanos com ramos ainda secos dão à paisagem o aspecto de quadros fora das telas.

Os restaurantes e bares se avizinham aos portais medievais da cidade milenar. Se o arco de Santa Maria, do século 16, já impressiona, ao atravessá-lo vem o suspiro de admiração diante da grandiosa Catedral de Santa Maria, um patrimônio mundial.

O templo gótico construído a partir de 1221 é uma galeria com obras do chão ao teto, como o zimbório da nave central sobre o túmulo do guerreiro El Cid, a escada dourada renascentista de Diego de Siloé, modelo da Ópera de Paris e a simpática figura do papa-moscas, que de hora em hora bate o sino com a boca aberta.

A visitação é uma amostra do mergulho histórico, por monumentos e ruínas, que marcam o percurso pela região de Castela e Leão, noroeste espanhol. A caminhada segue pelas estradas vicinais, onde em poucos minutos passam peregrinos vindos da Colômbia, África do Sul e países europeus.

Para desacelerar após o subir e descer pelas ruelas de Castrojeriz, o calmo passeio de barco pelo Canal de Castilla, em Frómista, na província de Palência, oferece um respiro antes de conhecer a famosa Igreja de San Martín, do século 11, tradução do estilo românico, com suas paredes rústicas.

Ao se perder pelas ruelas de Leão, é possível ouvir o rock vindo de um pub diante das muralhas que cercam a cidade se misturar às risadas infantis dos estudantes que saem das escolas a poucos metros da Catedral de Santa María de Regla, outro templo gótico do século 13.

Com uma das mais importantes coleções de vitrais do mundo, junto com a Catedral de Chartres, na França, não à toa ela é chamada de casa de luz. A sensação ali é de caminhar em direção ao infinito por tons de azul, vermelho, roxo, amarelo.

Leão tem ainda a marca de Gaudí, que em 1892 projetou a Casa Botines, e o cálice ornado de pedras preciosas da Infanta Dona Urraca, guardado no Museu de San Isidoro, uma das relíquias tidas como o Santo Graal.

Outra parada obrigatória na região é o monumental Castelo dos Templários, em Ponferrada, que teve a maior parte de suas imponentes paredes de pedra erguidas no século 15 e guarda ruínas dos tempos dos guerreiros católicos das Cruzadas, tesouro ignorado em meados de 1920, quando se tentou fazer ali um campo de futebol.

Na mesma atmosfera histórica se avança para a Galícia. A música celta que chega das lojas de souvenires dão o tom ao vilarejo O Cebreiro, em Lugo, que conserva construções pré-românicas, uma delas um museu que ajuda a ter ideia de como era a vida no interior das cabanas de palha e pedra. A serra até ali está entre os trechos mais desafiadores para os peregrinos.

No povoado fica a Igreja de Santa Maria, que guarda as relíquias do milagre em que o vinho e a hóstia consagrados pelo sacerdote incrédulo se transformaram em sangue e carne diante da fé de um camponês, no ano 1300.

Por terras galegas também passa o Caminho Português, um trajeto de 571 km a partir de Lisboa. O ar espanhol se apresenta em forma de brisa aos que atravessam de Valença a Tui pela ponte internacional sobre as águas do rio Minho.

Caminhar por terras galegas dá a oportunidade de admirar os tons de azul do mar ao céu a partir de cenários únicos, como as ruínas do castro de Santa Trega, um povoado do século 1 a.C, a 341 metros de altitude, em Guarda, na província de Pontevedra.

Duas igrejas para conhecer no trajeto são o Santuário da Virgem Peregrina, um pequeno templo dedicado aos viajantes em meio ao movimentado centro histórico de Pontevedra, e a igreja de Santiago, em Padrón, terra dos escritores Rosalía de Castro e Camilo José Cela.

Entre devotos, acredita-se que a pedra que pode ser vista em seu altar foi usada para amarrar a barca que transportou o corpo de Santiago.

Enquanto todos os caminhos terminam em Santiago de Compostela, um deles, o Caminho de Finisterra e Muxía, tem ali o seu início rumo à Corunha, um percurso de cerca de 90 km de pura beleza, a começar pela ponte Maceira, com seus arcos de pedra cercados por quedas d’água em meio ao verde das árvores e arbustos.

O Cabo de Finisterra era o que os romanos acreditavam ser o lugar mais ocidental da terra, o próprio fim do mundo.

Não é, mas o clima místico na colina, marcada pela estátua da bota de bronze e pela pedra do km 0, é um convite para contemplar o pôr do sol, à beira dos rochedos, ou estender a toalha para um piquenique no tapete de flores amarelas, sentindo o tempo mudar o ritmo.

Por falar em história do tempo, a praça que antecede a passarela leva o nome do físico Stephen Hawking, que definiu o fim do mundo como "um belo lugar". Sim, ele estava certo. A cerca de 30 km dali, a revoada de gaivotas salpica de branco o céu azul acima de outro farol, o de Muxía, onde, rodeado por rochedos, fica o Santuário da Nossa Senhora da Barca.

Foi nesse ambiente, em que o silêncio é rompido pelo mar que bate nas pedras, que segundo a tradição local, Santiago teve uma visão da Virgem, que em uma barca de pedra lhe animou a seguir seu caminho. Segundo os peregrinos, é só assim que o caminho termina e o convite para voltar permanece.


Guia para o Caminho de Santiago

Quanto custa fazer o Caminho de Santiago?

Há vários sites, como o oficial do caminho, o El Camino de Santiago, e de agências especializadas, Pilgrim, Gali.com Wonders, Tee Travel e Art Natura, que permitem fazer o orçamento de acordo com o caminho e com a forma de percorrer o trajeto escolhidos.

Uma simulação feita pela Folha no site Pilgrim para uma viagem a partir de 4 de junho, saindo de Sain Jean Pied de Port até Santiago de Compostela, com duração de 34 noites e hospedagem com café da manhã pode custar a partir de 2.985 euros (R$ 15.613), com serviços opcionais de transporte de mochilas por 170 euros (R$ 889,22) e seguro cancelamento por 140 euros (R$ 732,30) inclusos.

Quanto tempo preciso reservar?

Depende do número de etapas e da forma escolhida para fazer o caminho, mas é possível calcular a partir dos sites das agências, que também mostram quantos quilômetros precisarão ser percorridos por dia. Na simulação feita para o Caminho Francês pela Folha, a viagem teria duração de 34 dias.

Qual é a melhor época do ano para essa viagem?

Maio e junho são bons meses para fazer o caminho, por conta das temperaturas um pouco mais amenas na primavera.

Como funciona o serviço de transporte de bagagem?

O serviço pode ser contratado no site das agências, ao fechar o pacote. Na simulação feita pela Folha, o pacote para 34 dias ficou em 170 euros (R$ 889,22)

Quais são as opções para fazer o trajeto?

Além da tradicional peregrinação a pé, o peregrino também pode ir a Santiago de bicicleta ou a cavalo. Para quem busca uma viagem mais rápida, é possível fazer o trajeto com o Trem Peregrino, a partir de Madri, no verão europeu. Na mesma época, é possível fazer parte do caminho de veleiro, com a associação Northmarinas, que realiza o "Navega el camino".

A jornalista viajou a convite do Turismo da Espanha

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