Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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lei de zoneamento São Paulo

Zoneamento sem plano de bairro é capenga

Por que (quase) todo mundo está reclamando (com razão) da revisão da revisão do Zoneamento de São Paulo

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O Zoneamento já havia sido promulgado há meses, mas foi reaberto pela Câmara de São Paulo, no que anda sendo chamado da revisão da revisão. O processo termina nesta sexta-feira (26), com alguns vetos do prefeito Ricardo Nunes.

Há uma gritaria generalizada e justificável. Na última hora, sem discussão alguma, trechos específicos, terrenos e quarteirões foram incluídos no "laissez-faire" construtivo. À sensação de impenetrabilidade na selva de siglas do plano, soma-se o temor generalizado de acordar e descobrir um novo prédio ao lado da sua janela, crescendo rumo ao infinito, sem que você ficasse sabendo.

Por que esse nosso modo de fazer planejamento está dando tão errado?

Prédio em construção na avenida Afonso Brás no bairro Vila Nova Conceição, em São Paulo
Prédio em construção na avenida Afonso Brás no bairro Vila Nova Conceição, em São Paulo - Danilo Verpa - 14.abr.2024/Folhapress

A falta de Planos de Bairro

O Plano Diretor cuida das diretrizes para a cidade. O Zoneamento diz o que pode ser construído e usado em cada lote. Falta algo essencial no meio do caminho: o bairro, a escala local.

O Plano de Bairro é um jeito de pensar naquilo que diz respeito à escala local: faltam escolas, hospitais, parques? Como são os acessos a esses locais? Ele lida com espaços públicos, com a integração de equipamentos públicos e privados, com carências e com a vida cotidiana?

Um dos urbanistas que mais se preocupa com isso, Cândido Maltas Campos Filho defende em seu livro "Reinvente seu bairro: caminhos para você participar do planejamento de sua cidade" (Editora 34) que os Planos de Bairro sejam uma etapa prévia ao zoneamento.

Em São Paulo, essa etapa não aconteceu. Se consultados, executivo e legislativo dirão que os planos regionais estão previstos em lei. É verdade, mas o problema é que a legislação permite, mas não obriga a confecção dos planos de bairro. Apesar de no site da prefeitura constarem planos para cada subprefeitura, eles foram compilados em 2016, como uma lista de desejos, e têm algum valor como consulta mas não como plano.

Claro que o Plano de Bairro tem que se subordinar às diretrizes da cidade, mas é ele que faz a liga entre o macro e o micro, detalhando o território e suas particularidades. Com ele, o que é decidido ganha legitimidade. Sem ele, a discussão dos lotes, de que trata o Zoneamento, fica aberta a idiossincrasias e interesses localizados.

O protagonismo do legislativo

Outra razão para a desconfiança com o planejamento urbano tem a ver com a atribuição de responsabilidades entre os poderes. Nos últimos anos, o legislativo ganhou protagonismo no planejamento urbano, ocupando espaço de técnicos do executivo, propondo emendas muitas vezes em desacordo com o Plano Diretor, como a do vereador Isac Felix (PL), que permitiria construção de edifícios sem limite de altura em bairros exclusivamente residenciais.

Claro que vereadores podem e devem propor mudanças em planos e legislações, mas no que seria apenas uma revisão (e não uma refação) do Zoneamento, a atuação do legislativo trouxe mudanças conceituais e pontuais, reconfigurando um plano que ainda estava sendo avaliado e sobre os quais ainda não se têm certeza dos resultados.

Qual é o problema disso? A falta de critérios, a falta de hierarquia nas propostas e a falta de dados. Como o acesso de setores da sociedade aos vereadores não é isonômico, entidades mais organizadas conseguem ser ouvidas e pautar mudanças. Entidades de moradores, por exemplo, foram surpreendidas com as mudanças, fizeram abaixo assinados e tentam achar espaço para reverter decisões já tomadas.

Uma consequência disso é a judicialização cada vez maior, baseada na esperança de que o judiciário possa barrar processos com vício de origem.

Um dos pontos mais difíceis de avaliar é justamente a participação popular. Marca-se uma audiência pública sem muita divulgação, alguém faz uma apresentação pouco detalhada, cada pessoa ou associação se inscreve, fala três minutos e pronto. Não há resposta nem devolutivas enquanto as pautas seguem seu caminho sem discussão.

É assim que se descobre que uma quadra muda seu gabarito, que a frente do Jockey poderia ter novos prédios, que um terreno deixou de ser para habitação social e que uma operação urbana pode oferecer desconto para construtoras.

Pelo voto distrital

Falta "accountability", ou a responsabilização à Câmara. Sobra para a Prefeitura vetar aquilo que pega mais mal.

Não há maneira fácil de resolver isso, mas consigo pensar em algumas mexidas que coibiriam isso: o voto distrital e o limite para reeleições.

Num sistema com voto distrital ou voto distrital misto, as pessoas têm a chance de conhecer profundamente os poucos candidatos que representam a sua área e discutir diretamente assuntos ligados ao bairro. Isso depende, evidentemente, de uma discussão que não está no horizonte do sistema eleitoral brasileiro.

Um limite ao número de mandatos consecutivos também ajudaria a renovar a Câmara. Não dá para imaginar que novos candidatos consigam competir com vereadores veteranos com vários mandatos, que conhecem o sistema, controlam emendas parlamentares a seus locais de origem e distribuem cargos a seus correligionários.

Em nome da renovação na Câmara, vale a pena se discutir um limite para reeleição. Se um prefeito só pode exercer dois mandatos, por que não um vereador?

O futuro de São Paulo

Como será a cidade daqui a, digamos, 20 ou 30 anos? Conseguiremos fazer frente às mudanças climáticas? Teremos soluções para a provável falta d´água potável? Conseguiremos aumentar o acesso de transportes e emprego a pessoas de baixa renda? Crianças e mais velhos conseguirão andar a pé até uma escola ou uma farmácia em segurança?

Nossos planos recentes arranham essas questões, mas perdem-se na selva de siglas incompreensíveis e discussões intermináveis sobre os prédios, como se a altura fosse a única régua para pensar numa cidade melhor. Nada sobre a qualidade da vida no térreo e espaços públicos cotidianos. Pouco sobre a preservação do significado local. Insegurança jurídica.

Uma sensação amarga de que perdemos mais uma oportunidade de pensar no futuro. Até o próximo Plano Diretor, daqui a cinco anos.

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