Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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Descrição de chapéu transporte público

Gestão do meio-fio, um novo jeito de pensar no uso da rua

O espaço para estacionamento vai ter que ser redistribuído para acomodar novas prioridades

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A cidade mudou. A rua vai ter que mudar também.

Sabe aquela fila de carros estacionados na beira da calçada? A imagem faz pouco sentido na cidade contemporânea, que deveria priorizar transporte público, mobilidade ativa e preparar suas ruas para os novos usos.

Existe até um termo para isso: a gestão do meio-fio. O termo vem do inglês curb management, ou seja, o estudo da relação entre a rua e a calçada e uma decisão sobre quais são os melhores usos em cada lugar, privilegiando o transporte sustentável e a vitalidade das calçadas.

Oferecer espaço de graça ou cobrar para estacionar?

Nós crescemos com aquela imagem de que estacionar na rua é comum, quase um direito. O sujeito chegava cedo ao escritório e estacionava seu carro durante nove horas por dia. De graça.

Está na cara que esse espaço é um ativo subutilizado, que não ativa o comércio e ainda redistribui custos por toda a população (o asfaltamento é pago por todos). Isso anda sendo questionado em todas as partes.

O primeiro passo para melhorar isso foi o estacionamento pago, que se baseia na ideia de que é melhor ter mais gente usando as mesmas vagas, principalmente em zonas comerciais. São Paulo tem mais de 55 mil vagas de zona azul (22 mil só para motos). Faz sentido, e faria mais sentido ainda se a cobrança da zona azul se revertesse em melhorias diretas na mobilidade.

Transporte público e pontos de ônibus são mais importantes que vagas

Atualmente, esse é o maior exemplo de fricção nas ruas. Mesmo que apenas uns 4% dos 17 mil km de ruas sejam destinadas a faixas e corredores de ônibus, cada metro a mais para o transporte coletivo é discutido, xingado e disputado pelos motoristas. Talvez por isso, a gestão atual abriu mão de cumprir a meta de corredores.

Um exemplo concreto dessa fricção: a menor velocidade dos coletivos em São Paulo está na avenida Faria Lima. No Shopping Iguatemi, os táxis se acomodam num bolsão subdimensionado.

Os ônibus desviam e disputam a segunda e terceira faixas com os carros. As múltiplas conversões à esquerda e as entradas à direita multiplicam o problema. Ali, a ciclovia é hoje mais rápida do que qualquer meio motorizado e já está precisando ser ampliada pois a demanda vem aumentando. Mais fricção à vista.

Aplicativos

O desembarque está substituindo o estacionamento. O número de viagens em aplicativos já é muitas vezes superior às feitas em táxis e anda substituindo até transporte público.

Sem lugar específico, os motoristas dão uma paradinha no meio da rua ("é só um minutinho"), quem vem atrás buzina, e tudo trava.

Existem soluções: em San Francisco, a prefeitura mapeou direitinho os lugares onde há enorme demanda por carros de aplicativo. Nesses lugares, vão construir bolsões específicos para pegar e descarregar passageiros.

Entregas e delivery

A cidade não funciona sem cuidar da logística. É preciso que o comércio receba mercadorias, que a caçamba com entulhos seja retirada. E é preciso dar conta da miríade de milhares de entregas a domicílio a cada minuto, hoje completamente desreguladas e não fiscalizadas.

Motos e bicicletas ocupam sim espaço. Não dá para continuar contando com as calçadas ou desvãos entre as vagas para que os entregadores parem em segurança para eles e os pedestres. Grandes condomínios, dark kitchens e a prefeitura, claro, vão ter que pensar nisso.

Parklets

Os parklets foram regulamentados em SP há exatos dez anos e se multiplicaram com uma nova legislação feita durante a pandemia. Atualmente, são 393. Originalmente eram abertos a qualquer pessoa. Hoje funcionam mais como anexos de restaurantes e talvez estejam perdendo seu caráter de espaço público.

Ciclovias

São Paulo tem 730 km de malha cicloviária, a maior parte de ciclofaixas (pintadas no chão) e apenas um quarto de ciclovias (segregadas e mais seguras). Esse número precisa aumentar muito para que as pessoas se sintam mais compelidas a usar a bike. Em Paris, o número de viagens em bicicleta acabou de ultrapassar o de carro. Aqui, é menos de que 1% do total.

Pedestres e ciclistas dividem uma calçada estreita na ponte Eusébio Matoso. Até 140 ciclistas passam por ali por hora. - Caio Guatelli/Folhapress

As bicicletas de aluguel também ocupam espaço nas ruas. São sete mil bicicletas em 219 estações, distribuídas quase que exclusivamente em regiões mais centrais. Isso vai ter que ser multiplicado para que pessoas possam complementar parte do trajeto em bicicleta e devolver mais adiante.

Jardins de chuva e áreas verdes

Mais calor, mais chuvas localizadas, maior a necessidade de solo permeável. A disputa parece estar localizada na calçada, mas também vai para a rua logo logo, se quisermos aumentar a permeabilização de verdade.

Extensão da calçada

Para terminar a lista dos candidatos a ocupar espaço das ruas, faltou o principal: as calçadas, que sofreram a concorrência desleal da prioridade à circulação dos veículos.

Um exemplo: a avenida Santo Amaro. Nem a nova reforma conseguiu dar muito mais espaço para as calçadas. Como chegar ao transporte público sem calçadas? Vai ser preciso pelo menos garantir extensão das calçadas nos cruzamentos e faixas de pedestre.

A conclusão dessa história é que a cidade vai precisar encarar o conflito pelo uso do espaço das ruas, com mais coragem e inteligência. Se o meio-fio tem espaço finito, ao longo dos dias e das horas, seu uso é mutável e a tecnologia pode ajudar a melhorar sua flexibilidade (zona azul durante algumas horas, entrega de mercadorias em outras, ciclovia aos finais de semana, por exemplo).

A pior situação é a que temos hoje: um monte de carros parados durante o dia todo, uma calçada pequena, ônibus, motos, vans e automóveis brigando pelo espaço. A gestão do meio-fio pode garantir prioridade para formas mais sustentáveis de transporte e mais vitalidade às calçadas.

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