Mauro Calliari

Administrador de empresas pela FGV, doutor em urbanismo pela FAU-USP e autor do livro 'Espaço Público e Urbanidade em São Paulo'

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O calçadão do centro; funcionalidade não precisa ser sem graça

Não há nada de errado em trocar as pedras portuguesas. O problema é a falta de criatividade

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O calçadão do centro de São Paulo estava pedindo uma reforma faz tempo e agora começam a aparecer os resultados das obras que cercaram parte do triângulo histórico e que são anunciadas há anos. Na gestão Doria, criou-se com alguma pompa uma Comissão Permanente de Calçadas, que chegou a anunciar um novo piso para os calçadões. A comissão foi desfeita e as obras deixadas de lado. Na gestão Bruno Covas, o projeto foi adiado. A gestão atual fez a licitação e começou agora a entregar os novos trechos.

Embaixo do solo, a obra é razoavelmente complexa. Há camadas de fios, tubos, cabos, vestígios de trilhos e até fundações de casas coloniais. O custo de R$ 63 milhões parece justo para organizar essas camadas todas.

Em cima do solo, porém, o resultado, por enquanto, é decepcionante.

Fotografia colorida mostra calçadão no centro de São Paulo; pessoas caminham.
Obra finalizada do novo calçadão no centro de São Paulo - Mauro Calliari/Folhapress

Os primeiros trechos liberados mostram um piso de concreto, liso, sem graça e até sem a variação de tons que constava dos poucos croquis disponíveis. Estão previstos bancos básicos, que começam a ser instalados, assim como uns vasinhos com plantas. O piso vai melhorar a caminhabilidade, não há dúvida, mas o projeto merecia um pouco mais de cuidado.

A troca das pedras portuguesas não é um problema em si. Elas nunca fizeram parte tão fundamental do patrimônio paulistano, ao contrário do Rio ou de Manaus – e, claro, Lisboa, que ostenta seus desenhos com orgulho. O problema é que a manutenção tem sido historicamente malfeita. Basta uma volta pelos calçadões para encontrar buracos ou remendos toscos, feitos com cimento. Na chuva, as pedras são perigosas e escorregadias. Cadeirantes e pedestres sofrem com os desníveis.

Diante da melancólica constatação de que a manutenção não vai melhorar, a decisão pela troca parece inevitável. As pedras até poderiam ter sido mantidas em alguns trechinhos, não como local de caminhar, mas como uma evocação do passado, uma memória que não atrapalharia a circulação. O único trecho previsto em que serão mantidas é na Praça do Patriarca.

Inspirações no mundo todo

Quando o calçadão foi construído, em 1976, o centro ainda oferecia atrações e trabalho, mas os escritórios já estavam migrando gradualmente para outras regiões da cidade. O então prefeito Olavo Setúbal implantou os calçadões para facilitar a vida das multidões que disputavam espaço com os carros nos seus deslocamentos a pé pelas ruas entre as estações e os terminais. O piso tinha desenhos, havia bancos, vasos de plantas e iluminação decorativa. O centro perdeu energia e o calçadão piorou junto.

No momento em a cidade discute como retomar a vitalidade do centro, atraindo novos moradores, o calçadão precisaria refletir novas dinâmicas de uso. Em vários lugares pelo mundo, há novas soluções que poderiam ser tentadas.

Desde que Copenhague pedestrianizou a rua Stroget, em 1961, as sucessivas gerações de calçadões oferecem uma vitrine de opções e modelos, desde a Times Square em Nova York à rua XV de Novembro em Curitiba, a primeira cidade brasileira a implantar a novidade, que ainda mantém a qualidade desde sua inauguração em 1972.

Decoração de Natal na rua Stroget, em Copenhague, Dinamarca. - Ritzau Scanpix/Liselotte Sabroe/REUTERS

Na nova geração de calçadões, há um arsenal de soluções híbridas, para dar vazão ao transporte coletivo, mas também para facilitar entregas ao comércio, acessos exclusivos para veículos de moradores e atrações para os turistas. Em meio a esses, os pedestres reinam, soberanos.

Visitando alguns desses bons exemplos, dá para ver como o denominador comum é um bom desenho urbano, bons materiais, segurança e a participação de lojistas e moradores, que discutem e legitimam os projetos. Em Londres, calçadões ocupam com sucesso a margem do Tâmisa. Em Buenos Aires, as ruas do centro seguram o movimento, mesmo na crise. Em Madri, há uma rede de ruas exclusivas de pedestres mas também há soluções híbridas, de uso compartilhado ou com uma faixa especial para veículos, bem segregada.

Visitei Pontevedra, na Galícia, no mês passado, uma cidade pequena que ficou famosa pela caminhabilidade. Ali, há grandes estacionamentos ao redor do centro e vários tipos de configurações que permitem manter a vitalidade econômica e urbanidade. Além da mistura de moradia e comércio, o segredo é a qualidade do espaço público, que faz com que famílias, velhinhos e crianças frequentem sem medo o mesmo local.

No momento em que a Prefeitura está tentando atrair novos moradores para a região central, propondo reformas, incentivos, retrofits e conseguindo nos últimos tempos até melhorar a sensação de segurança no centro, dá para ser mais criativo na infraestrutura mais básica, a rua.

Antes de mexer nos calçadões do lado do Centro Novo, melhor investir no desenho urbano, na qualidade dos materiais e nas consultas a quem mora e trabalha nesses lugares para poder ter mais legitimidade. Custa só um pouco a mais ter projetos melhores e mais criativos para um pedaço tão importante da cidade.

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