Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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Jean William: 'O que eu carrego é uma memória de dor'

Tenor que já se apresentou para o papa vai ganhar biografia, diz que falar em meritocracia no Brasil é injusto e relembra episódio em que foi abordado com arma pela PM sem receber explicações

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O tenor Jean William

O tenor Jean William no Teatro do Sesi-SP, na avenida Paulista, em São Paulo Karime Xavier/Folhapress

O auditório do número 1.313 da avenida Paulista está lotado. É noite de quarta-feira, mas a agitação típica de um dia útil não impede que cerca de 300 espectadores estejam ali presentes para apreciar um concerto. Na coxia, por trás das cortinas que cercam o palco, um jovem cantor de ópera tem seus olhos cerrados e as duas mãos sobre o peito.

O tenor de 36 anos é Jean William, que entoa uma oração silenciosa antes de se juntar à Orquestra Bachiana Filarmônica Sesi-SP. Poucos depois de as últimas notas da "Sinfonia nº 40" de Mozart serem executadas, seu nome é anunciado pelo maestro. Jean se agacha e coloca a mão sobre o palco como se pedisse a sua bênção. Em seguida, sai em disparada rumo ao público —e é recepcionado com uma chuva de aplausos.

Desde meados de 2009, quando conheceu o maestro João Carlos Martins e seu nome começou a ganhar projeção no universo da música erudita, o tenor já se apresentou em lugares prestigiados como o Lincoln Center, em Nova York (EUA), e cantou para autoridades como o papa Francisco, o príncipe de Mônaco e os últimos quatro presidentes brasileiros, de Lula (PT) a Jair Bolsonaro (PL).

O tenor Jean William
O tenor Jean William no Teatro do Sesi-SP, na avenida Paulista, em São Paulo - Karime Xavier - 15.mar.2022/Folhapress

No início da carreira, seu público era formado por convidados de casamentos e velórios realizados no interior paulista. Sua trajetória na última década tampouco lembra o adolescente que sonhava em ser um novo Freddie Mercury e se comparava a Luciano Pavarotti ao cantar um jingle de propaganda de sorvete. Aos 13 anos, ele entoava a paródia "dá-me um Cornetto", inspirada no clássico "O Sole Mio", para provar o seu ponto.

"Minha avó sempre foi muito noveleira, então eu assisti todas aquelas novelas que tinham essa temática meio ítalo-brasiliana. Com aquele pouco que eu tinha de memória do que era canto lírico, falei: ‘Eu sei imitar o Pavarotti’", relembra sobre um diálogo com uma professora, em que ele se esforçava para não perder a chance de ter aulas de música. "Ela falou: ‘Eu tenho duas notícias para te dar. A ruim é que você é um péssimo imitador. A boa é que essa é a sua voz, ela só precisa ser trabalhada’."

A história de Jean William tem início em Sertãozinho (SP), onde nasceu, e se desenrola na cidade vizinha de Barrinha, em que foi criado pela avó faxineira e pelo avô boia-fria. "Meu avô trabalhava como cortador de cana. Ele se aposentou nessa profissão", conta o tenor.

O trabalho pesado fazia com que o patriarca tivesse câimbras diárias nas mãos e nos braços. "Mesmo assim, não teve um dia em que eu não o vi tocar alguma música", relembra o neto. Entre as serestas dedilhadas pelo avô e as trilhas das novelas da avó, nascia ali a sua veia musical.
O tenor Jean William no Teatro do Sesi-SP, na avenida Paulista, em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

A primeira grande oportunidade para estudar música surgiu após ganhar um concurso na escola pública que frequentava. Por causa dele, passou a ter aulas de canto e, com isso, foi convidado a se apresentar em um simpósio de educação. Foi então que conheceu a mulher que mudaria a sua vida em definitivo.

"Con Te Partirò", do italiano Andrea Bocelli, era a música escolhida para que Jean apresentasse no evento. "Fui lá e cantei atrás do púlpito. Ninguém me via porque eu era mais baixinho do que sou hoje. Mas aí veio essa professora, Júlia, dizendo: ‘Menino, você é a reencarnação do [tenor Enrico] Caruso’", conta à coluna. "‘Não sei o que é Caruso, mas se for coisa boa, obrigado’", relembra, aos risos, sobre a resposta que deu a ela.

Dona Júlia, como é chamada pelo tenor, era então uma professora de geografia. Deslumbrada com o aspirante a cantor lírico, a educadora se propôs a pagar os estudos do garoto e a hospedá-lo em sua casa em Sertãozinho para que ele pudesse se dedicar às aulas. Jean podia jurar que sua avó negaria o pedido de uma desconhecida. Mas se surpreendeu. "Minha avó falou: ‘Para estudar? Pode levar embora, não precisa nem voltar'", diz, gargalhando.

"Minha avó olhou e falou: ‘Alguém está dando uma oportunidade que eu não vou poder dar’. Essa é a cabeça do homem e da mulher pobre brasileira. Ao mesmo tempo, o coração dela cortou de saber que o netinho ia embora.

Dali em diante, Jean passou a dedicar seus dias a aulas que o preparavam para o vestibular. A labuta renderia a ele uma aprovação no curso de música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, no campus de Ribeirão Preto. "Não é desta vida o encontro que eu tive com a dona Júlia", afirma.

A excepcionalidade de sua história agora vai virar livro, "O Resumo da Ópera" (Letramento), que está em pré-venda e será lançado em 26 de maio. O volume é fruto de mais de três anos de trabalho e 50 entrevistas feitas pelo jornalista Elcio Padovez.

"É um livro que fala muito de empoderamento preto, do poder da educação e da cultura para transformar uma sociedade. Ele conta uma grande história. Chegou a hora de o Brasil conhecer mais o Jean. De as pessoas saberem quem é realmente o Jean William, não só o menino que vai ao palco e dá um show, mas que inspira", afirma o biógrafo à coluna.

Jean diz não desejar que a obra se transforme em literatura de autoajuda, mas que inspire ao revelar uma história sobre oportunidades. Ele reconhece, ainda, que a trajetória de um garoto pobre que cursou uma das mais importantes universidades da América Latina e rodou o mundo por causa de seu trabalho se encaixa no discurso que defensores da meritocracia gostam de contar, e foge dele.

"A meritocracia no Brasil envolve questões muito mais complexas. Não é assim ‘é só você se esforçar que você consegue’. Não dá. Se o indivíduo trabalha das sete da manhã às sete horas da noite, que esforço vai conseguir fazer?", afirma. "Antes da meritocracia, tem que existir boas oportunidades. Que foi o que eu tive."

Em janeiro deste ano, Jean foi abordado por policiais militares enquanto fazia uma travessia de balsa no litoral de SP. O cantor lírico ocupava o banco do motorista de seu carro de alto padrão quando um PM apontou uma arma para o seu rosto e ordenou que ele descesse do automóvel, com as mãos erguidas.

Não houve esclarecimentos sobre o motivo da ação no momento da ocorrência, e o tenor se sentiu alvo de uma abordagem de motivação racista. A Polícia Militar afirmou que Jean teve seu carro clonado e, por isso, foi interpelado como um possível criminoso. Ele, porém, não havia sido notificado sobre a clonagem.

Questionado sobre o episódio, o tenor é breve. "A única coisa que posso dizer é que o racismo no Brasil existe", afirma. "Eu escutava coisas do tipo ‘neguinho cantando italiano nem combina’. Uma professora de música falou: ‘Você não devia seguir a carreira de ópera porque não existem príncipes pretos’. Os lugares que eu frequentava eram de elite, às vezes você chega naquele lugar e o indivíduo fala: ‘A entrada de serviço é por lá’."

O tenor Jean William no Teatro do Sesi-SP, na avenida Paulista, em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

"A gente sofre racismo mesmo. É muito descarado. O que eu carrego, e que eu tenho certeza que muitos dos meus colegas carregam, é uma memória de dor. De você não entender por que a cor da sua pele ainda é um problema nesse país depois de tudo o que nós já sofremos", diz Jean. "A escravidão foi uma vergonha. Tudo o que serve à escravidão ainda hoje é uma vergonha."

Ao chegar à segunda metade de sua terceira década de vida, Jean diz se relacionar com sua voz "com mais amor" do que no início da carreira. "Hoje me sinto muito seguro tanto para fazer coisas belíssimas quanto para errar. Subir no palco e falar ‘hoje não foi um bom dia’ ao invés de ‘meu Deus, eu vou morrer’ [risos]. Aceitar as imperfeições com naturalidade, mas com responsabilidade."

"Hoje não me interessa apenas ser um artista de performance, mas ter esse valor para as pessoas de que a música é um instrumento de transformação", diz o tenor, que no próximo dia 5 apresenta um dueto com a cantora Luiza Possi no teatro do Copacabana Palace, no Rio de Janeiro. "Eu canto sorrindo porque sinto prazer naquilo que estou fazendo. Dessas coisas eu não abro mão: de sentir prazer enquanto estiver no palco, seja qual for, e dessa ternura que é minha."

Erramos: o texto foi alterado

O jornalista Elcio Padovez trabalhou por três anos na escrita do livro "O Resumo da Ópera", não seis. O texto foi corrigido.

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