Mônica Bergamo

Mônica Bergamo é jornalista e colunista.

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'Gosto de mulheres intensas, doidas, um pouco violentas, que abrem a janela para ver o que vem', diz Luiza Mariani

Atriz carioca concluiu nesta semana as filmagens de 'Cyclone', uma história trágica que persegue há 18 anos; agora, ela se prepara para produzir e atuar na cinebiografia de Marina Lima

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A atriz Luiza Mariani Jorge Bispo/Divulgação

Era uma tarde fria de sexta-feira, em uma rua sem saída na região central de São Paulo com casinhas geminadas, onde moram pessoas de renda muito baixa, famílias inteiras em espaços limitados —muitos deles, imigrantes sem documentação.

Mas não tinha nenhum morador lá naquela tarde, e as janelas e portas haviam sido trocadas por outras de madeira, para parecerem antigas, do começo do século 20, quando se passa a trama. E as fachadas foram pintadas cada uma de uma cor.

Uma das casinhas tinha sido decorada por dentro para servir de locação. É lá que mora Cyclone, a personagem principal —daí o título— de um longa-metragem que acaba de ser filmado entre São Paulo e Santos, no litoral. Não dá ainda para prever a data de estreia do filme. Segundo Joana Mariani, uma das produtoras, "se der absolutamente tudo certo, em um ano um longa fica pronto depois do fim das filmagens".

Do lado de fora, no meio da rua, uma tenda está montada com monitores e cadeiras para que a equipe de iluminação, maquiagem, figurino, assim como as produtoras e eu, convidada para assistir às filmagens daquele dia, pudéssemos ver o que estava sendo gravado na única casa iluminada naquele momento.

Luiza Mariani, como Cyclone, a personagem naquela cena, estava de cabelo meio preso, roupas simples, nenhuma maquiagem, sentada em uma escrivaninha iluminada por um abajur e escrevendo alguma coisa em um caderninho antigo, com ar de desencanto. Linda ela, pensei na hora, pena que está tão triste.

A atriz Luiza Mariani no set de filmagem, em São Paulo, caracterizada como a protagonista do filme "Cyclone" - Fabio Braga/Pivô Audiovisual/Divulgação

Há um vaivém de pessoas com rádios presos na cintura, fones de ouvido e alguns com uma espécie de pochete de jardineiro, daquelas com vários bolsos e muitas coisas eletrônicas em cada um deles. De repente, uma voz feminina fala, não grita, fala, com muita serenidade, "gravando". Um silêncio absoluto toma conta da rua.

Essa é uma rara equipe de filmagem chefiada só por mulheres. A diretora Flávia Castro, as produtoras Joana Mariani, Eliane Ferreira e Maria Carlota, a roteirista Rita Piffer e a atriz Luiza Mariani, que emprestou o corpo, a alma, o cérebro e 18 anos de sua vida para que esta produção viesse a acontecer.

Quando a cena termina, a atriz levanta um pouco a saia, sai da casa iluminada e corre para a tenda em busca de uma balinha. Atrás dela vem a diretora, Flávia Castro, que se espanta com a luz do dia. "Achei que já tinha escurecido", diz ela, que tem passado tantas horas gravando cenas internas que perde a noção do tempo.

"Esse filme é uma média produção, se a gente comparar com o mercado brasileiro", explica outra produtora, Eliane Ferreira. "Uma grande produção seria ‘A Viagem de Pedro’, da Laís Bodanzky, lançado no ano passado. Nós estamos no mesmo patamar de ‘A Vida Invisível’", diz, citando o longa de Karim Aïnouz, de 2019.

Em números, isso quer dizer que "Cyclone" tem um custo menor que R$ 10 milhões. Mas pensar só em dinheiro para avaliar a grandeza dessa produção seria uma injustiça com Luiza Mariani, que há 18 anos alimenta o sonho de transformar essa trama, trágica e real, em longa-metragem.

"Eu tinha 25 anos. Já era atriz havia quase dez e estava em busca de uma história que eu pudesse produzir e interpretar no teatro, quando a Renata Sorrah tirou da estante da casa dela o diário ‘O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo’ e me disse: ‘Aqui está a sua personagem’", conta Luiza, vestida com o figurino da cena.

O diário é uma obra coletiva produzida entre 1918 e 1919 por frequentadores da garçonière —termo emprestado do francês que significa um apartamento destinado a encontros amorosos não permitidos— do escritor Oswald de Andrade (1890-1954), antes de ele se tornar um dos nomes mais importantes do movimento modernista e dos casamentos com a pintora Tarsila do Amaral, entre 1926 e 1929, e, depois, com a poetisa Pagu, entre 1930 e 1934.

Miss Cyclone, apelido dado por ela mesma, tinha 17 anos quando começou a se relacionar romanticamente com Oswald de Andrade, dez anos mais velho, que já tinha um filho de três anos com uma namorada francesa.

Cyclone era a única mulher que frequentava a garçonière, portanto há trechos de "O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo" escritos por ela, além de Oswald e outros amigos. O nome verdadeiro dela era Maria de Lourdes Castro Pontes, mas era chamada de Deysi, Tufão ou Miss Cyclone pelos amigos.

"Ela tinha uma coisa romântica, engraçada na escrita", diz Luiza, que além dos trechos da obra coletiva também teve acesso a um diário de Cyclone que está na biblioteca da Unicamp. E só, nada mais. Ela nunca chegou a publicar um livro só dela.

"A carreira de escritora da Cyclone não aconteceu, ela tentou muito, mas não deu certo. Até a existência dela foi praticamente apagada pela história", diz sua intérprete.

Cyclone morreu aos 19 anos por complicações de um aborto clandestino, e já estava desenganada quando se casou com Oswald in extremis, termo jurídico que significa que um dos dois corre risco de morte. A legislação brasileira abre uma exceção nesses casos para que o casal possa se declarar marido e mulher sem a presença de um juiz.

A atriz Luiza Mariani no set de filmagem, em São Paulo, caracterizada como a protagonista do filme "Cyclone" - Fabio Braga/Pivô Audiovisual/Divulgação

"Ela deixou um romance pronto, e pediu ao marido, no leito de morte, que publicasse seu livro. Mas Oswald perdeu o original, ou jogou fora, ninguém sabe ao certo. E esse foi o fim da carreira de Cyclone. É como se ele tivesse acabado tanto com o passado dela como com qualquer possibilidade de futuro", diz Luiza.

A atriz levou essa história aos palcos do Rio de Janeiro em 2006, mas desde a estreia sonhava com uma versão cinematográfica. E só agora, aos 42 anos, conseguiu fazer o seu filme.

Para o cinema, a trama foi adaptada pela roteirista Rita Piffer, com colaboração de Luiza, claro. A Cyclone do filme é operária de uma gráfica, mora num cortiço e sonha em ser dramaturga. Ela tem um romance com Heitor, um diretor de teatro rico e famoso, papel de Eduardo Moscovis, que conhece numa garçonière.

Pergunto a Luiza por que, afinal, ela ficou tão interessada na história dessa mulher com quem ela, aparentemente, não tem nada em comum. Luiza é uma carioca de uma família de intelectuais de classe alta que apoiaram a filha adolescente quando, aos 16 anos, decidiu parar de estudar para fazer teatro.

A atriz Luiza Mariani - Jorge Bispo/Divulgação

"Fiz minha primeira peça com um grupo incrível, que tinha a Carolina Dieckmann e a Taís Araujo, todas nós adolescentes, começando no teatro", lembra. "Depois, rodei o Brasil durante um ano com duas peças do Domingos de Oliveira (1936–2019). Uma experiência inesquecível."

Aos 18 anos, foi morar em Nova York para estudar teatro e cinema. Mais uma vez, contou com o apoio dos pais. Na volta, entrou no elenco de "Malhação", da TV Globo. Produziu o primeiro espetáculo teatral aos 21 anos. Fez só duas novelas, "Desejo de Mulher", em 2002, e "Cobras e Lagartos", em 2006, mesmo ano em que estreou no teatro com "Cyclone".

Desde então, se casou com um advogado chamado André, "uma grande paixão", e teve dois filhos, Dora, de 11 anos, e Tom, de sete. Ou seja, nada na vida e na obra de Luiza parece ter algum ponto de encontro com a de Cyclone. Mas ela não vê a história dessa maneira.

"Assim como ela, eu sempre tive o desejo de tomar as rédeas, sabe? Fazer as coisas que eu queria e que eram importantes para mim, da minha maneira", explica. "Além disso, sempre tive muita atração por mulheres intensas, doidas, até um pouco violentas, essas que abrem a janela para ver o que vem por aí e nos mostrar como vai ser o futuro."

A atriz Luiza Mariani - Jorge Bispo/Divulgação

Não à toa, agora que realizou um desejo que por muitos anos parecia impossível, Luiza já abriu ela mesma a janela para dizer o que vem por aí.

Seu próximo projeto é outra cinebiografia de uma mulher forte e extremamente sensual: a cantora e compositora Marina Lima, com quem ela vem se encontrando semanalmente nos intervalos das filmagens de "Cyclone".

Luiza vai ser de novo produtora e protagonista. Pergunto se ela sabe cantar. Ela me olha de lado e ri, como quem sabe que pode. Alguém duvida?

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