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Cinema

'A Viagem de Pedro' não sabe fugir do ufanismo ao retratar dom Pedro 1º

Longa estrelado por Cauã Reymond ao menos dá espaço para que personagens negros e femininos existam na narrativa

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A Viagem de Pedro

  • Quando Estreia nesta quinta (1º) nos cinemas
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Cauã Reymond, Vitória Guerra e Rita Wainer
  • Produção Brasil, 2021
  • Direção Laís Bodanzky

"A Viagem de Pedro" é um filme estranho. Ele se enquadra nas características da chamado "biopic", já que ficcionaliza a biografia de dom Pedro 1º. Mas procura adotar uma perspectiva contra-hegemônica, incluindo o olhar de mulheres e de pessoas negras que faziam parte do entourage do monarca. Tenta, assim, fugir do tom ufanista associado às comemorações do bicentenário da independência. Mas será que consegue de fato alcançar essa perspectiva diversa?

O drama histórico centrado na figura do primeiro imperador do Brasil tem o ator Cauã Reymond como produtor e protagonista. Dirigido por Laís Bodanzky, o longa narra o regresso de dom Pedro 1º para a Europa, em 1831, depois de ter abdicado do trono brasileiro em favor do filho, dom Pedro 2º.

Cauã Reymond durante as filmagens de 'A Viagem de Pedro', produção dirigida por Laís Bodanzky - Divulgação

O período a bordo delimita a duração ficcional da narrativa. No confinamento do navio, um espaço com regras próprias, espécie de entre-lugares definido por Michel Foucault como heterotopia, e sujeito a um tempo suspenso, mais lento, Pedro é apresentado como um personagem atormentado.

Considerados uma lacuna histórica pela escassez de documentos, os meses entre o embarque no Rio de Janeiro e o desembarque na França permitem as liberdades que o roteiro cria.

A lembrança de Maria Leopoldina, primeira mulher de Pedro 1º, morta em 1826, atravessa a mente e o corpo de Pedro. Além de se culpar pela relação com a amante Maria Domitila, o protagonista também apresenta certo arrependimento por sua insistência nas gestações seguidas da imperatriz —e por gestos violentos desferidos contra ela, tão gentil, inteligente e carismática.

Conhecido por seu apetite sexual, o Pedro do navio, já com a segunda mulher, Amélia, é um homem impotente. Em investidas às escondidas aos porões do navio, ele observa os trabalhadores negros em seus momentos de folga, à noite, e tenta, no contato com eles, buscar remédios para os males que o perturbam.

Coprodução entre Brasil e Portugal, o filme tem como ponto forte seu elenco internacional. O alemão falado por Maria Leopoldina, na delicada melodia da voz de Luise Heyer, não apenas acrescenta densidade às memórias do imperador, mas dá corpo à perspectiva feminina que o filme busca.

O mesmo pode ser dito em relação à dicção de Amélia, interpretada pela portuguesa Victória Guerra, ainda que seu papel não tenha grande destaque. Ao alternar inglês, português e crioulo da Guiné-Bissau, o guineense Welket Bunguê acrescenta verdade e história ao contra-almirante Lars, elite entre os trabalhadores do navio, único negro a se sentar à mesa junto com o casal real e o capitão britânico.

Vale a pena mencionar, ainda, a forte presença em cena de Isabél Zuaa —conhecida por sua atuação em "As Boas Maneiras", de Marco Dutra e Juliana Rojas—, na pele da trabalhadora livre Dira, e a atuação de Sérgio Laurentino como cozinheiro –algo bruxo– do navio.

Há um notável esforço para que personagens negros e femininos existam na narrativa, com falas inteligentes, tempo de tela e, mais importante, atitudes que contestam, já no século 19, a perspectiva masculina e branca dominante.

Tal esforço, no entanto, não minimiza o foco do filme no personagem do monarca, na centralidade que atitudes patriarcais, machistas, racistas e dominadoras têm na narrativa. O desejo de crítica ao ufanismo envolvido na figura do imperador independentista não encontra plenamente lastro no filme que chega às telas.

Para ter de fato perspectivas não hegemônicas, seria necessário que a trama se concentrasse realmente em personagens como Leopoldina, Amélia, Lars ou Dira.

"A Viagem de Pedro" não chega a se distanciar do protagonista, jamais retratado frontalmente como anti-herói. O drama psicológico do imperador sem trono, entre pátrias, as piadas sobre sua impotência e suas crises de consciência chegam, hoje, como sinais de que o filme ficou, ele também, um tanto perdido no meio do oceano, quase como uma embarcação à deriva.

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