Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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Muniz Sodré

A marca de Caim

A América começa a descobrir, na identificação entre liberdade e gozo do tiro, o fundo mítico da tese de Hobbes

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Se não nesta semana, é grande a probabilidade de que na próxima ocorra nos EUA um assassinato em massa, quando um indivíduo munido de armas poderosas atira aleatoriamente sobre outros. O "mass shooting" é tão americano quanto a "apple pie" ou o Halloween.

Não se equivalem, certo, mas são típicos do país que celebra no dia 4 de julho o seu excepcionalismo mundial e um sentimento nacional de liberdade associado à posse indiscriminada de armas. Este ano, na região de Chicago, a festa foi interrompida por um atirador, que matou celebrantes na rua a tiros de fuzil.

Pistolas são exibidas em evento da Associação Nacional do Rifle (NRA, na sigla em inglês), nos Estados Unidos
Pistolas são exibidas em evento da Associação Nacional do Rifle (NRA, na sigla em inglês), nos Estados Unidos - Patrick T. Fallon/AFP

Nunca se ofereceu uma explicação satisfatória para o fenômeno. Historicamente, o primeiro caso teve como autor Howard Barton Unruh, que, em 6 de setembro de 1949, matou 13 vizinhos a tiros de pistola Luger nas ruas de Camden, Nova Jersey. Unruh tinha sido herói da Primeira Guerra Mundial. Mas o fenômeno expandiu-se depois da Segunda Guerra, a cabo de sociopatas, numa atmosfera social turbinada pela "democratização" das armas.

Guerra, como definiu Martin Luther King, é uma "injeção de veneno do ódio na veia". E essa talvez seja uma pista explicativa para as matanças aleatórias. Numa sociedade sempre predisposta à guerra, como é o caso da americana, querendo ou não, o cidadão carrega dentro de si a marca de uma letalidade fratricida, fomentada tanto pelo individualismo voraz quanto pela liberdade constitucionalmente associada às armas. A especulação tem forte respaldo estatístico: 42% da posse de armas privadas (270 milhões de unidades) em todo o mundo se encontram nos EUA.

Provém de Hobbes a reflexão no sentido de que aquilo que os seres humanos têm realmente em comum é a capacidade de matar e a consciência de que podem ser mortos. Essa generalização passa ao largo do comum integrado e solidário em um sem-número de sociedades tradicionais e modernas. Entretanto é pertinente à hipótese do ódio como forma social subterrânea, mas ativa, turbinada por emoções de ressentimento e vingança.

É o que acontece nas exacerbações fascistas, ou então sob as aparências democráticas de uma grande potência belicamente estruturada, como os EUA. A guerra é interna na feroz competição de classe social, mas também externa na geopolítica imperial.

Agora, aturdida pelas matanças e mais descrente de seu longo sonho benfazejo (vendido ao mundo por cinema e show-business), a América começa a descobrir, na identificação entre liberdade e gozo do tiro, o fundo mítico da tese de Hobbes: a marca de Caim. Mas, como tudo "made in USA", é algo que se exporta, junto com a instigadora retórica do ódio, e se reproduz nos clubes de iniciação ao fascismo das colônias.

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