Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Com chuvas cada vez mais intensas, rios que viram ruas voltarão a ser rios

Se não for alterado o modelo urbanístico, as enchentes não só se repetirão como se tornarão mais intensas

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Enquanto em Los Angeles o filme coreano "Parasita", que mostra uma enchente avassaladora afogando um bairro pobre em Seul, recebia vários Oscar, São Paulo vivia uma noite dramática da mesma natureza. 

Era óbvio que uma tempestade dessa dimensão chegaria a São Paulo, após os desastres em Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Os eventos extremos gerados pelas mudanças climáticas vieram para ficar e serão cada vez mais contundentes. O governo não pode mais continuar negligenciando essa questão.

Já as gestões locais não podem mais se justificar dizendo que em uma noite choveu mais o previsto para o mês, baseadas em médias históricas. A emergência climática está gerando chuvas recordes no sudeste brasileiro e isso não é mais um fenômeno excepcional mas um evento que se repetirá. Aconteceu agora em São Paulo e, há duas semanas, destruiu Belo Horizonte, na maior chuva em cem anos. Voltará a acontecer!

Os efeitos do aquecimento global estão chegando mais rápido do que o esperado, superando os modelos previstos pelos cientistas, como afirmou Carlos Nobre, um dos maiores especialistas no tema. Fenômenos climáticos extremos que só eram esperados após 2030 estão acontecendo já nessa década.

O enfrentamento sério dessa questão exige tanto medidas capazes de mitigar o aquecimento global, previstas nas metas do Acordo de Paris, que o Brasil se comprometeu a cumprir em 2016 mas que Bolsonaro despreza, como a alteração do modelo de desenvolvimento urbano das nossas cidades, cujo protagonismo é das gestões municipais.

No caso de São Paulo, esse modelo urbanístico se caracteriza por uma mancha urbana que cresceu sem respeitar o meio físico. O solo foi excessivamente impermeabilizado e áreas verdes foram destruídas. A arborização foi negligenciada em meio a ruas estreitas e repletas de fiação aérea.

As várzeas do Tietê e do Pinheiros, que deveriam ter sido transformadas em parques após a retificação dos rios, foram ocupadas por uma urbanização selvagem. Não por acaso, a Ceagesp e outras áreas junto à marginal do Pinheiros estão inundadas.

As Áreas de Proteção Permanente, faixas de 30 metros ao longo de córregos, que deveriam ser preservadas, foram ocupadas por avenidas, na lógica da prioridade para o automóvel. As principais avenidas da cidade estão sobre os córregos. Embora o equívoco dessa solução já esteja diagnosticado há muito tempo, há dez anos o governador José Serra, com o apoio do prefeito Gilberto Kassab, criou mais três faixas na marginal do Tietê, retirando cerca de 1.500 árvores e áreas permeáveis.

Empreendimentos imobiliários impermeabilizam o subsolo e bombeiam águas subterrâneas para a superfície. Favelas junto aos córregos ou em encostas íngremes, que se tornam áreas de risco, são inevitáveis frente à especulação com terrenos ociosos e a falta de soluções habitacionais. A ausência de uma política séria de resíduos sólidos e de limpeza urbana gera acúmulo de lixo que entope as bocas de lobo.

Nessas condições, a drenagem é insuficiente para absorver os altos índices pluviométricos, agravada pela impermeabilização do solo e pela falta de arborização, que ampliam e aceleram a chegada da água nos fundos de vale, rios e córregos da cidade.

Construir mais piscinões, como está previsto e não tem sido realizado pelos governos municipais e estadual (que gastaram, respectivamente, 48% e 43% do orçamento previsto no ano passado para drenagem), é necessário frente aos equívocos do passado. Mas se não for alterado o modelo urbanístico da cidade, as enchentes não só se repetirão como se tornarão mais intensas, pois o problema é estrutural e exige mudanças mais profundas, ainda mais radicais do que as propostas no Plano Diretor de São Paulo.

Entre elas, podem ser citadas:

  • Ampliação da permeabilidade do solo e do subsolo nos empreendimentos imobiliários, reforçando a cota ambiental
  • Criação de um programa de apoio para a implantação de tanques de captação das águas pluviais nos lotes, para retardar a chegada da chuva no sistema de drenagem, solução mais sustentável do que os custosos piscinões
  • Contenção rigorosa da expansão horizontal da área urbanizada, fortalecendo a zona rural, já adotada em São Paulo e que precisa ser estendida para toda a região metropolitana
  • Preservação das áreas verdes existentes, impIantando os 168 parques previstos no Plano Diretor e ampliando a arborização urbana, com adequado manejo
  • Promoção de uma forte campanha educativa e publicitária para reduzir a geração de resíduos sólidos e melhorar a manutenção e limpeza das ruas para evitar o acúmulo de lixo que reduz a vazão do sistema de drenagem e gera assoreamento de córregos e rios
  • Produção de moradias em massa, para remanejar os moradores em áreas de risco e em fundo de vale, com subsídios para atender a baixa renda
  • Criação de um sistema de alerta em áreas de risco para situação emergenciais

A tragédia deve servir de alerta para que a sociedade se conscientize de que a mudança climática é uma questão que afeta de forma dramática a vida dos cidadãos, que o planejamento urbano é indispensável para enfrentar o problema das enchentes e que apenas medidas estruturais, proporcionais a esse desafio, podem garantir resultados sustentáveis para a aliviar os graves efeitos dos eventos climáticos extremos.

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