Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

Remover monumentos e homenagens racistas sem destruir a memória

Movimento anticolonial e antirracista precisa desconstruir a trama histórica equivocada através de um projeto cultural e educacional consistente

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"... São Paulo, a Vila de Anchieta e Nóbrega, (...) cresceu, expandiu-se a mercê dos aventurosos bandeirantes à busca do ouro, índios e diamantes, e dilatou as fronteiras da pátria. Quatro séculos passados reúnem-se nesta data e neste palácio, que é a Casa do Povo, as sombras gloriosas do passado e a esplêndida realidade do presente."

Esculpida no mármore da parede externa da Câmara Municipal de São Paulo, essa frase iguala os povos indígenas ao ouro e diamante, objetos de caçada colonial dos “aventurosos bandeirantes”. Inaugurada junto com a nova sede do legislativo, em 7 de setembro de 1969, durante a ditadura militar, a frase ainda está lá, expressando não “as sombras gloriosas do passado”, mas a vergonhosa herança colonial; não “a esplêndida realidade do presente”, mas a triste realidade da permanência do racismo.

Estátua de Borba Gato, em Santo Amaro
Estátua de Borba Gato, em Santo Amaro - Zanone Fraissat/Folhapress

Em 2001, quando exercia mandato de vereador, apresentei Projeto de Resolução para suprimir essa referência ufanista aos bandeirantes e ultrajante aos índios. Não tive sucesso, meu projeto foi considerado ilegal pois, segundo a Comissão de Justiça do legislativo paulistano, uma homenagem do passado não podia ser revista a posteriori.

O caso voltou à minha cabeça nesse momento em que se debate a derrubada de estatuas de figuras que promoveram o racismo, a escravidão e a dominação colonial. Ele é exemplar da dificuldade de romper com a história oficial de São Paulo, construída sobre uma farsa, solidamente fincada no ideário dominante paulista.

Problematizar e rever essa trama histórica através de um amplo debate democrático é indispensável para que a necessária remoção de monumentos racistas não seja um elemento a mais na crescente polarização e escalada de ódio e fanatização que se prolifera pelo país.

A exaltação dos bandeirantes é profunda e está presente em um variado espectro de elementos materiais e imateriais que fazem parte do cotidiano de São Paulo. Sua presença vai muito além da simbólica estátua fantasiosa de um Borba Gato, majestoso, de botas e uniformizado como um soldado prussiano, que nunca existiu.

As homenagens aos bandeirantes estão em todos os lugares, reiteradamente. Bandeirantes, Anhanguera, Raposo Tavares, Fernão Dias, Paes Leme, Borba Gato, Jorge Velho, Mateus Grou, Simão Alvares, Cunha Gago, Brás Leme, entre tantos outros, são ao mesmo tempo rodovias, ruas, avenidas, bairros e monumentos, casas históricas. Muitos são anônimos, ninguém sabe quem são, o que fizeram e por que estão sendo homenageados.

Mais do que derrubar estátuas, temos que desconstruir mitos e uma visão distorcida da história que está na origem da homenagem a esses genocidas. Já foi amplamente demostrado que a figura heroica do bandeirante nunca existiu tal como expresso em monumentos e relatos ufanistas.

Sua principal atividade foi matar e caçar índios, aprisioná-los e vendê-los como escravos. Participaram ativamente da destruição das missões jesuíticas e do consequente genocídio de dezenas de milhares de guaranis. Pelo menos 300 mil indígenas foram escravizados, segundo Darcy Ribeiro, embora formalmente Portugal tenha proibido a prática. Grande parte dos 4,5 milhões de habitantes originários das terras ocupadas pelos colonizadores foram dizimados.

A farsa bandeirante foi construída no final do século 19, quando a elite tradicional paulista, enriquecida pelo café, mas sem poder político, buscou criar uma identidade própria que pudesse simbolizar seu projeto de poder.

Historiadores comprometidos com esse projeto, como Afonso d’Escragnolle Taunay, Alfredo Elias Jr. e Alcântara Machado realçaram o mito dos bandeirantes, ocultando as atrocidades cometidas contra os indígenas. Elias Jr. os considerava um “povo superior (raça planaltina)” ou uma “raça de gigantes” (tudo a ver com o tamanho das estatuas de Fernão Dias e de Borba Gato). Na obra de Taunay, a escravidão indígena é justificada pois “a ideia de êxito na conquista territorial redimiria os bandeirantes de toda a qualquer culpa em relação à violência praticada”.

A construção dessa trama histórica se tornou conveniente em 1932, quando o projeto de poder da elite paulista levou o país a uma guerra civil. Reforçar a identidade paulista através de um figura mítica heroica era necessário para justificar o esforço de guerra. Derrotados, o mito ganhou evidencia em 1954, no 4º Centenário, quando o ufanismo paulista (“a locomotiva que puxa 22 vagões”) chegou ás alturas, com arrogância e soberba.

O movimento anticolonial e antirracista precisa desconstruir essa trama histórica equivocada através de um projeto cultural e educacional consistente. Retirar monumentos e cancelar homenagens, assim como dar visibilidade aos que foram oprimidos, deve ser resultado de um resgate da memória e não de uma tentativa de destruição da memória.

Quem apaga a memória, queima livros e impõe uma única visão da história são os regimes fascistas. Nas democracias, a reflexão e o debate devem prevalecer, estudando-se como tratar cada situação específica.

Por que não transformar as inúmeras casas bandeiristas, que fazem parte do Museu da Cidade da Secretaria de Cultura, em locais onde se resgata a história dos colonizadores paulistas, problematizando tanto as atrocidades que cometeram como sua eventual contribuição? Estatuas como o Borba Gato poderiam ser deslocadas para essas casas, contextualizadas adequadamente.

Por que não ressignificar pontos de referência urbanos relevantes, como a entrada de Santo Amaro, substituindo o Borba Gato por um monumento de igual tamanho em homenagem ao povo guarani, que foi massacrado pelos bandeirantes nas missões, explicando por que isso foi feito?

Por que monumentos que não devem ser removidos, como o Monumento das Bandeiras, de indiscutível valor artístico, não se tornam locais de debate e reflexão sobre o objeto da obra de arte, na perspectiva de uma cidade educadora, onde o espaço público se torna um instrumento para a formação cidadã?

Por que não se abrir um debate sobre a mudança dos nomes das rodovias e avenidas que homenageiam pessoas que reconhecidamente cometeram crimes contra a humanidade? No lugar de avenida dos Bandeirantes, que tal avenida Tim Maia, Adoniran Barbosa ou Marielle Franco?

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