Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Primeiras-damas e socialites devem cuidar da população em situação de rua?

Em diálogo com a socialite Val Marchiori, Bia Doria demonstrou que desconhece inteiramente a realidade da população em situação de rua

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Existe uma tradição, oriunda do patriarcado, que delega às esposas dos governantes a responsabilidade de cuidar de órgãos voltados à assistência, como se a política social fosse algo acessório que pudesse ser cuidada por pessoas despreparadas, sem experiência ou sensibilidade social.

A tradição vem de longe, mas se institucionalizou nacionalmente durante o Estado Novo. Em 1942, a primeira-dama Darcy Vargas criou a Legião Brasileira de Assistência (LBA), inicialmente para ajudar as famílias dos soldados que participariam da Segunda Guerra Mundial, mas que logo se tornou abrangente, para atender famílias que viviam na pobreza.

A LBA passou a ser comandada regionalmente pelas esposas dos governadores e dos prefeitos, posto que os cargos executivos eram ocupados sempre por homens. A partir de então, todas as primeiras-damas do país assumiram a presidência de honra da LBA, modelo que se reproduziu por estados e municípios, que criaram órgãos assistenciais destinados a dar uma função pública às esposas dos governantes.

Primeira-dama Bia Doria e governador de São Paulo, João Doria, durante evento em março de 2020
Primeira-dama Bia Doria e governador de São Paulo, João Doria, durante evento em março de 2020 - Mathilde Missioneiro/Folhapress

A tradição foi rompida no governo FHC, quando a LBA foi extinta e a professora e socióloga Ruth Cardoso criou e dirigiu a Comunidade Solidária, uma proposta inovadora para enfrentar as questões sociais em parceria com entidades do 3º setor.

Antes dela, Sarah Kubitschek teve também um papel relevante. Primeira-dama de Minas Gerais, ela criou a Fundação das Pioneiras Sociais, transferida para o governo federal quando Juscelino se elegeu presidente, e que se tornou uma instituição de utilidade pública. Hoje a Rede Sarah é uma referência na reabilitação de vítimas de politraumatismos e problemas locomotores, com unidades hospitalares espalhadas em nove capitais do país.

Esses exemplos (ou exceções) são necessários para mostrar que primeiras-damas podem, eventualmente, serem boas gestoras. Mas não existe nenhuma regra divina que garanta que, apenas por serem esposas dos governantes, elas tenham aptidão, experiência e capacidade para cuidar do serviço social ou para promover ações assistenciais.

O diálogo entre Bia Doria e a socialite Val Marchiori seria apenas mais uma demonstração da perversidade da elite econômica, em um país campeão em desigualdade social, se a primeira-dama do estado não fosse também a presidente do Fundo Social de São Paulo.

Ao afirmar que “não é correto você chegar lá na rua e dar marmita, porque a pessoa tem que se conscientizar que ela tem que sair da rua. Porque a rua hoje é um atrativo, a pessoa gosta de ficar na rua", a esposa do governador demostrou, além de preconceito e discriminação, desconhecer inteiramente a realidade da população em situação de rua.

Não é por opção que essa população está rua mas por falta de opção. De acordo com o Censo realizado pela prefeitura de São Paulo, 50% está rua em decorrência de conflitos ou falecimento de familiares; 23% por perda de trabalho; 23% por dependência de drogas ou/e álcool; 33% por perda de moradia; 13% por problemas de saúde; 9% são egressos do sistema prisional ou socioeducativo e 3% são imigrantes ou migrantes. Como se sabe, o crescimento desse contingente foi de 53% entre 2015 e 2019, alcançando 24,3 mil pessoas e se acelerou com a pandemia.

A declaração de Bia Doria chocou ainda mais porque essa população tem sobrevivido em meio ao isolamento social graças a uma enorme rede de solidariedade de distribuição de cestas básicas e marmitas, que tem evitado o agravamento da fome nessa população, cumprindo um papel que deveria ser do Estado.

Para Pai Denisson D’Angiles, sacerdote umbandista que coordena uma das muitas ações de solidariedade, "as afirmações chocam pela insensibilidade e desconhecimento sobre a população em situação de rua. Saímos semanalmente para levar comida, roupas e carinho para nossos irmãos em situação de rua. O que fazemos é a prática da caridade, da compaixão, fazendo valer a máxima: 'faça aos outros o que gostaria que te fizessem'”.

Como integrantes do topo de pirâmide social, o 1% que detém 27% da renda do país, Bia e Val não se veem na posição de quem poderia estar na rua passando fome. Nem de ter que buscar um abrigo da prefeitura, locais que são rejeitados por grande parte da população em situação de rua.

O enfrentamento do problema da população em situação de rua deveria ser uma prioridade do poder público, ainda mais na pandemia. Ao invés de criticar a distribuição de marmitas, a primeira-dama deveria coordená-la para garantir que ninguém passe fome, ao mesmo tempo em que poderia se empenhar para viabilizar iniciativas, emergenciais e estruturais, capazes de contribuir para minimizar essa problema estrutural da sociedade, entre as quais:

  1. Destinação emergencial de oito mil vagas em hotéis (que estão desocupados) para garantir alojamento adequado para moradores em situação de rua que estão no grupo de risco, como determinou a Promotoria de Direitos Humanos do MPSP. A prefeitura, abriu um edital para apenas 500 vagas, mas nenhum estabelecimento aceitou as péssimas condições oferecidas.
  2. Instalação de banheiros, bebedouros e lavatórios públicos em áreas externas, para garantir acesso a água potável e higiene para todos.
  3. Melhoria das condições dos abrigos e sua adaptação às características dessa população, como a destinação de locais para guarda de pertences pessoais e carroças assim como garantir o ingresso e a permanência de animais.
  4. Considerar, em todas as iniciativas, as particularidades e diferentes graus de autonomia da população em situação de rua, como idosos, mulheres, travestis e transexuais, famílias e imigrantes.
  5. Alocar recursos para implementar projeto de atendimento integral a essa população, em termos de acolhimento, tratamento de saúde e terapêutico, capacitação profissional e trabalho, com o objetivo de possibilitar o retorno ao convívio familiar e obtenção de uma moradia.
  6. Garantir a implementação de um grande número de vagas em “repúblicas”, solução proposta por entidades ligadas a Igreja Católica por garantir mais autonomia aos moradores como alternativa ao rejeitado acolhimento em albergue.

Como afirmou a Pastoral de Rua da Arquidiocese de São Paulo, "opiniões como as pronunciadas pela primeira-dama reforçam a violência, discriminação e preconceito que diariamente fere e humilha os que são relegados ao abandono e omissão do Estado”. A melhor maneira dela desmentir o que afirmou é colocar em prática um programa para enfrentar as diferentes faces desse problema.

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