Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Nabil Bonduki

Com 'submarino' antidemocrático, Covas conseguiu aprovar o fim do passe livre dos idosos

Em conluio com prefeito, Câmara Municipal vem utilizando expediente para alterar leis sem conhecimento prévio de ninguém

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O descaso da gestão Bruno Covas e da Câmara Municipal de São Paulo com a transparência e com a democracia não pode passar em branco, apesar da atenção que requer a explosão da pandemia (que superou a média diária de mil óbitos), a urgência da vacinação e as costumeiras barbaridades de Bolsonaro.

Enquanto o país sofre uma aguda crise sanitária e social, boiadas de graves consequências estruturais estão passando desapercebidas, sem informação, justificativas e debate com a sociedade civil e cidadãos.

A mais recente ocorreu em São Paulo, na antevéspera do Natal, e os desdobramento são visíveis na redução do direito dos idosos de ir e vir e no enfraquecimento do setor de planejamento urbano da prefeitura, no ano em que está prevista a revisão do Plano Diretor.

A Câmara Municipal, em conluio com o prefeito, vem utilizando, cada vez com maior frequência, um expediente chamado de “submarino” para aprovar alterações legislativas sem conhecimento prévio de ninguém.

Idosos protestam contra fim do passe livre, em São Paulo - Bruno Santos - 9.jan.21/Folhapress

A prática funciona da seguinte maneira. A liderança do governo apresenta, pouco antes da votação, um substitutivo a um projeto de lei que já tramitou nas comissões do Legislativo e que, portanto, está em condições de voto. Nesse substitutivo, são introduzidos dispositivos legais que nada tem a ver com o projeto original mas que são de grande relevância para a cidade.

Apresentados na última hora, os substitutivos não são submetidos a nenhum processo participativo. Ficam ocultos: não são publicados previamente no Diário Oficial, divulgados pela imprensa, nem submetidos a debates públicos.

Sem conhecerem o conteúdo desses “submarinos”, os vereadores os aprovam, pois a base governista, formada no tradicional processo do “toma-lá-dá-cá”, tem maioria. É um expediente de viés autoritário, que não condiz com o regime democrático que o prefeito Bruno Covas diz defender.

Foi assim que foi aprovado o fim da gratuidade da tarifa dos ônibus para os idosos entre 60 e 64 anos e a autorização para o prefeito alterar, ao seu bel-prazer e sem discussão pública, a estrutura administrativa da prefeitura.

Esses dispositivos foram introduzidas no substitutivo do Projeto de Lei 89/2020, que originalmente tinha apenas um artigo, autorizando a Secretaria das Subprefeituras a exercer a fiscalização do cumprimento das leis, complementarmente às subprefeituras.

Esse singelo projeto de lei, quando o “submarino” veio à tona, virou a poderosa Lei 17.542, de 22 de dezembro de 2020, com onze artigos que nada tinham a ver com o objeto original e que alteraram nada menos que catorze dispositivos legais. A lei trata de assuntos totalmente díspares, como temas tributários, de qualificação de organizações sociais, de extinção de empresa, de organização administrativa, de multas e de gratuidade do transporte coletivo.

Dentre alterações, a que tem causado mais repercussão e impacto na vida dos cidadãos é a revogação da Lei 15.912/2013, que deu gratuidade para os idosos de 60 a 64 anos nos ônibus municipais. Não vou debater o mérito da questão, mas o processo antidemocrático que ocorreu no Legislativo.

O passe livre aos idosos foi concedido no bojo da pactuação da sociedade com o poder público municipal e estadual após as manifestações de junho de 2013. Na época, o assunto amplamente debatido na perspectiva de garantir o direito à mobilidade, vis-à-vis com a capacidade financeira da prefeitura.

O tema voltou à tona na campanha eleitoral de 2020. Alguns candidatos, como Boulos e Tatto, defenderam avançar nas gratuidades, em direção à tarifa zero, propondo novas fontes de receita. Outros, como André do Val e Joice Hasselmann, defenderam uma auditoria nas planilhas das empresas concessionárias, chamadas de máfias, visando reduzir o subsídio municipal.

Nenhum candidato defendeu a extinção das gratuidades para reduzir o déficit do serviço de ônibus. Nem Covas que, um mês após sua reeleição, mandou sua liderança do governo a introduzir a medida no “submarino” do PL 89/2020, sem que ninguém soubesse disso. Normalmente, isso é chamado de estelionato eleitoral.

Não questiono se a prefeitura tem recursos para manter, reduzir ou ampliar as gratuidades. O assunto é complexo e depende da forma de remuneração das empresas (por serviço ou por tarifa), da organização do serviço e da capacidade de subsidiar a tarifa, entre outros aspectos.

O correto seria, antes de qualquer alteração, debater o tema de forma transparente, buscando soluções. Lamentável, e muito feio, é o prefeito e sua base suprimirem esse direito debaixo do pano, na surdina.

Outro aspecto nefasto do “submarino” foi a autorização, verdadeira carta em branco, dada pelo Legislativo para o prefeito alterar, a qualquer tempo, a estrutura administrativa da prefeitura.

Desde que não crie novos cargos (já tem muitos!), o prefeito agora pode, por decreto, de modo imperial e sem debate público, criar, extinguir ou fundir secretarias, alterar sua denominação, transferir competências e finalidades e inativar órgãos públicos.

Essa facilidade para mexer no organograma municipal é altamente desestruturador dos órgãos públicos. Cada alteração custa caro em desorganização da máquina e paralisação dos serviços prestados aos cidadãos. Além disso, torna a gestão, que tem dez partidos em sua base, ainda mais sujeita a injunções políticas.

O prefeito não perdeu tempo em usar essa nova prerrogativa. Para contemplar sua nova aliada, a ex-prefeita Marta Suplicy, recriou a Secretaria de Relações Internacionais que ele próprio extinguiu em 2019 (com autorização legislativa), para “enxugar a máquina”.

Mais grave foi a decisão de Covas, sem consultar ninguém, de extinguir a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e fundi-la com a Secretaria de Licenciamento, terceira alteração desse setor em quatro anos e que ocorre no ano em que o Plano Diretor será revisto. Mas isso é assunto para outra coluna.

É inacreditável a submissão da Câmara Municipal ao prefeito, abrindo mão dos suas próprias atribuições. E é uma vergonha os vereadores aceitarem como praxe esses “submarinos”, aprovando leis na escuridão.

O Ministério Público precisa se insurgir contra esse expediente imoral e ilegal que vem se repetindo no Legislativo paulistano. E o judiciário precisa anular leis que tem por base substitutivos que não se relacionam com os projetos de lei originais.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.