O descaso da gestão Bruno Covas e da Câmara Municipal de São Paulo com a transparência e com a democracia não pode passar em branco, apesar da atenção que requer a explosão da pandemia (que superou a média diária de mil óbitos), a urgência da vacinação e as costumeiras barbaridades de Bolsonaro.
Enquanto o país sofre uma aguda crise sanitária e social, boiadas de graves consequências estruturais estão passando desapercebidas, sem informação, justificativas e debate com a sociedade civil e cidadãos.
A mais recente ocorreu em São Paulo, na antevéspera do Natal, e os desdobramento são visíveis na redução do direito dos idosos de ir e vir e no enfraquecimento do setor de planejamento urbano da prefeitura, no ano em que está prevista a revisão do Plano Diretor.
A Câmara Municipal, em conluio com o prefeito, vem utilizando, cada vez com maior frequência, um expediente chamado de “submarino” para aprovar alterações legislativas sem conhecimento prévio de ninguém.
A prática funciona da seguinte maneira. A liderança do governo apresenta, pouco antes da votação, um substitutivo a um projeto de lei que já tramitou nas comissões do Legislativo e que, portanto, está em condições de voto. Nesse substitutivo, são introduzidos dispositivos legais que nada tem a ver com o projeto original mas que são de grande relevância para a cidade.
Apresentados na última hora, os substitutivos não são submetidos a nenhum processo participativo. Ficam ocultos: não são publicados previamente no Diário Oficial, divulgados pela imprensa, nem submetidos a debates públicos.
Sem conhecerem o conteúdo desses “submarinos”, os vereadores os aprovam, pois a base governista, formada no tradicional processo do “toma-lá-dá-cá”, tem maioria. É um expediente de viés autoritário, que não condiz com o regime democrático que o prefeito Bruno Covas diz defender.
Foi assim que foi aprovado o fim da gratuidade da tarifa dos ônibus para os idosos entre 60 e 64 anos e a autorização para o prefeito alterar, ao seu bel-prazer e sem discussão pública, a estrutura administrativa da prefeitura.
Esses dispositivos foram introduzidas no substitutivo do Projeto de Lei 89/2020, que originalmente tinha apenas um artigo, autorizando a Secretaria das Subprefeituras a exercer a fiscalização do cumprimento das leis, complementarmente às subprefeituras.
Esse singelo projeto de lei, quando o “submarino” veio à tona, virou a poderosa Lei 17.542, de 22 de dezembro de 2020, com onze artigos que nada tinham a ver com o objeto original e que alteraram nada menos que catorze dispositivos legais. A lei trata de assuntos totalmente díspares, como temas tributários, de qualificação de organizações sociais, de extinção de empresa, de organização administrativa, de multas e de gratuidade do transporte coletivo.
Dentre alterações, a que tem causado mais repercussão e impacto na vida dos cidadãos é a revogação da Lei 15.912/2013, que deu gratuidade para os idosos de 60 a 64 anos nos ônibus municipais. Não vou debater o mérito da questão, mas o processo antidemocrático que ocorreu no Legislativo.
O passe livre aos idosos foi concedido no bojo da pactuação da sociedade com o poder público municipal e estadual após as manifestações de junho de 2013. Na época, o assunto amplamente debatido na perspectiva de garantir o direito à mobilidade, vis-à-vis com a capacidade financeira da prefeitura.
O tema voltou à tona na campanha eleitoral de 2020. Alguns candidatos, como Boulos e Tatto, defenderam avançar nas gratuidades, em direção à tarifa zero, propondo novas fontes de receita. Outros, como André do Val e Joice Hasselmann, defenderam uma auditoria nas planilhas das empresas concessionárias, chamadas de máfias, visando reduzir o subsídio municipal.
Nenhum candidato defendeu a extinção das gratuidades para reduzir o déficit do serviço de ônibus. Nem Covas que, um mês após sua reeleição, mandou sua liderança do governo a introduzir a medida no “submarino” do PL 89/2020, sem que ninguém soubesse disso. Normalmente, isso é chamado de estelionato eleitoral.
Não questiono se a prefeitura tem recursos para manter, reduzir ou ampliar as gratuidades. O assunto é complexo e depende da forma de remuneração das empresas (por serviço ou por tarifa), da organização do serviço e da capacidade de subsidiar a tarifa, entre outros aspectos.
O correto seria, antes de qualquer alteração, debater o tema de forma transparente, buscando soluções. Lamentável, e muito feio, é o prefeito e sua base suprimirem esse direito debaixo do pano, na surdina.
Outro aspecto nefasto do “submarino” foi a autorização, verdadeira carta em branco, dada pelo Legislativo para o prefeito alterar, a qualquer tempo, a estrutura administrativa da prefeitura.
Desde que não crie novos cargos (já tem muitos!), o prefeito agora pode, por decreto, de modo imperial e sem debate público, criar, extinguir ou fundir secretarias, alterar sua denominação, transferir competências e finalidades e inativar órgãos públicos.
Essa facilidade para mexer no organograma municipal é altamente desestruturador dos órgãos públicos. Cada alteração custa caro em desorganização da máquina e paralisação dos serviços prestados aos cidadãos. Além disso, torna a gestão, que tem dez partidos em sua base, ainda mais sujeita a injunções políticas.
O prefeito não perdeu tempo em usar essa nova prerrogativa. Para contemplar sua nova aliada, a ex-prefeita Marta Suplicy, recriou a Secretaria de Relações Internacionais que ele próprio extinguiu em 2019 (com autorização legislativa), para “enxugar a máquina”.
Mais grave foi a decisão de Covas, sem consultar ninguém, de extinguir a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e fundi-la com a Secretaria de Licenciamento, terceira alteração desse setor em quatro anos e que ocorre no ano em que o Plano Diretor será revisto. Mas isso é assunto para outra coluna.
É inacreditável a submissão da Câmara Municipal ao prefeito, abrindo mão dos suas próprias atribuições. E é uma vergonha os vereadores aceitarem como praxe esses “submarinos”, aprovando leis na escuridão.
O Ministério Público precisa se insurgir contra esse expediente imoral e ilegal que vem se repetindo no Legislativo paulistano. E o judiciário precisa anular leis que tem por base substitutivos que não se relacionam com os projetos de lei originais.
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