Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Nabil Bonduki

Prefeitura quer promover Black Friday imobiliária na operação urbana Água Branca

Câmara prevê votação de lei que barateia potencial construtivo; medida inviabilizaria requalificação

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A Câmara Municipal programou para quarta-feira (2) a segunda votação do Projeto de Lei 397/2018, do Executivo paulistano, que reduz em até 86% os valores do Cepac (Certificados de Potencial Construtivo Adicional) relativos à Oucab (Operação Urbana Consorciada Água Branca). É um escândalo!

Se aprovado, o PL irá reduzir de R$ 1.400 para até R$ 200, o valor que um promotor imobiliário pagará por m² adicional em um edifício residencial, situado em uma região em acelerada valorização.

Essa boiada está passando quase despercebida pela sociedade, apesar dos esforços do conselho gestor. E tem tido o aval da Câmara Municipal, que em dezembro o aprovou em primeira votação, através de um acordo onde a nem oposição (PT e PSOL) votou contra. Agora, a maioria governista quer passar o trator e aprovar em segunda votação.

Se isso ocorrer, os terrenos irão se valorizar, empreendedores serão favorecidos e a operação perderá a perspectiva de arrecadar os recursos necessários para cumprir seu plano de intervenções, fixado em lei. Na prática, inviabiliza a requalificação da área, pois a receita futura será drasticamente reduzida.

Vista da Barra Funda a partir de empreendimento imobiliário no bairro
Vista da Barra Funda a partir de empreendimento imobiliário no bairro - Alberto Rocha/Folhapress/11.06.2019

A Oucab, aprovada em 1997 e revisada em 2013, através da Lei 15.893/2013, que está em vigor mas que foi praticamente congelada pela prefeitura, é um projeto de transformação urbanística ao longo da orla ferroviária, no distrito da Barra Funda. Esse distrito, ocupado por antigos galpões industriais, equipamentos desativados e glebas vazias, tem a segunda menor densidade demográfica da cidade e ocupa o penúltimo lugar em população, embora esteja situado em uma região de alto potencial.

A operação propõe uma reestruturação urbanística, com implantação de vias, pontes, passarelas, áreas públicas e verdes, habitação social, saneamento de córregos e urbanização de favelas. As intervenções seriam custeadas com a venda de Cepacs, em leilões promovidos pela prefeitura.

A gestão municipal argumenta que o valor do Cepac, fixado na lei de 2013 em R$ 1.400 para os edifícios residenciais e em R$ 1.600 para os não residenciais, está muito elevado e propõe uma drástica redução, para atrair o mercado.

De fato, no único leilão realizado pela prefeitura, em 2015, o resultado foi frustrante. Mas o contexto era muito desfavorável: crise econômica e forte recessão, altos juros e baixa do mercado imobiliário. Depois disso, a prefeitura não realizou mais nenhum leilão de Cepac, praticamente congelando a operação.

O tema precisa ser debatido em duas perspectivas, uma financeira e outra urbanística.

Do ponto de vista financeiro, a questão é se o valor fixado na lei de 2013 é realmente elevado e se precisa ser reduzido? Algumas evidências mostram que não.

Segundo estudo da arquiteta e urbanista Laissa Stroher, representante do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil) no conselho gestor da operação, o valor médio por m² adicional pago em 2013, ainda na vigência da lei anterior, foi de R$1.390, em valores nominais, que atualizado pela taxa Selic alcançaria R$ 2.738 em 2021. Isso mostra que o valor fixado em 2013 não estava distante do praticado pelo mercado naquele momento.

Em 2012 e 2013, o mais importante empreendimento implantado na OUCAB, o Jardim das Perdizes, pagou por m² adicional entre R$ 1.135 e 1.543, em valores nominais. Atualizados pela Selic, ele alcançaria hoje entre R$ 2.235,95 e R$ 3.039. Com a redução no valor do Cepac e com a tabela de conversão do Cepac em m² proposta pelo PL 397/2018, o empreendedor desse empreendimento pagará apenas R$280 por m², ou seja, em torno de 10% do que pagou oito anos atrás, em valor real.

Por outro lado, o valor do Cepac não foi reajustado e permanece fixo em valor nominal desde 2013. Hoje, o valor do Cepac, ainda fixado em R$ 1.400, equivale a R$ 710 de 2013, ou seja, ele já sofreu uma redução de quase 50%.

É claro que uma reavaliação dos valores dos Cepac, com transparência, em conjunto com o conselho gestor, pode ser feita. Os empreendimentos não residenciais, cujo mercado está deprimido, requer de fato uma revisão. Mas isso não pode ser feito como uma liquidação de fim de feira. Não tem sentido o Cepac na Água Branca valer menos de um sexto do que na operação urbana Água Espraiadas!

Do ponto de vista urbanístico, o que cabe debater é a viabilidade e a necessidade das operações urbanas. Elas sofrem a concorrência das ZEU (Zonas de Estruturação Urbana), situadas nos eixos de transporte coletivo, ambas permitindo maior adensamento.

As ZEU, de acordo com o Plano Diretor, são direcionadas para um produto imobiliário específico, com limite na áreas dos apartamento e no número de garagens. Como estão em áreas mais estruturadas, o valor de terra é mais alto.

Já as operações urbanas estão situadas em áreas de grande potencial mas desestruturadas urbanisticamente, apresentando valores de terrenos mais baixos. Os projetos de intervenção urbanas cumprem o papel de reestruturá-las e requalificá-las, garantindo recuperação ambiental e interesse social, utilizando os recursos dos Cepac. Como admitem maior flexibilidade nas regras de uso e ocupação do solo, eles tem vantagens em relação aos eixos, inclusive por os recursos obtidos são aplicados na própria área.

Por essa razão, flexibilizar o uso do solo nos eixos, como pretende o mercado imobiliário na revisão do Plano Diretor, terá como consequência a inviabilidade dos projetos urbanos nas áreas de reestruturação, como a Oucab, o que é indesejável.

A queima de Cepacs proposta pelo PL 397/2018 irá inviabilizar o plano de intervenções da Oucab, inclusive a produção de habitação social, com grandes perdas para o futuro da cidade.

O município irá vender barato o potencial construtivo, um bem público raro que na prática é um terreno virtual. Se, eventualmente, a prefeitura arrecadar um pouco mais em um primeiro momento, é evidente que perderá no futuro, desperdiçando a oportunidade de reestruturar as últimas áreas que permitem a cidade crescer para dentro, de forma planejada.

Em tempo. Em 2013, quando foi aprovada revisão da Oucab, ficou estabelecido em lei a destinação de todos os recursos já arrecadados até aquele momento (R$ 960 milhões) para três obras: a drenagem dos córregos Agua Preta e Sumaré, a construção de habitação social para as famílias removidas, há mais de dez anos, das favelas Aldeinha e do Sapo e o prolongamento da avenida Auro de Moura Andrade.

Os recursos estão no caixa da prefeitura há oito anos. Salvo uma primeira etapa da drenagem dos córregos, feita em 2015 e 2016, quase nada foi feito nos últimos cinco anos para implantar essas obras. Em 31 de março, o saldo da operação urbana era de R$ 675 milhões!

Se o PL 397/2018 é um escândalo, a implementação do plano de obras da operação é uma vergonha.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.