Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki
Descrição de chapéu Mobilidade

Moradias que Prefeitura de SP quer comprar devem ser destinadas só aos pobres

Desde 2017, município não cumpre a destinação obrigatória de 30% do Fundurb para a habitação social

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É fácil visualizar a imensidão da necessidade habitacional de São Paulo. Basta circular pelo centro, tomado pelas barracas e cobertores da população em situação de rua ou pelas periferias, onde moradias precárias ocupam beiras de córregos, encostas íngremes e áreas de proteção ambiental, esperando a próxima catástrofe.

Ou olhar para as favelas, cada vez mais "verticalizadas", onde lajes mal estruturadas são vendidas ou alugadas para a construção de novas moradias, em um amontado de alojamentos que reproduzem, em áreas de urbanização inadequada, condições de habitabilidade semelhantes aos cortiços, sem salubridade, insolação e ventilação.

A impressão intuitiva do problema é confirmada pelos números.

Equipe da prefeitura de São Paulo faz atendimento a moradores em situação de rua
Equipe da prefeitura de São Paulo faz atendimento a moradores em situação de rua - Marlene Bergamo - 23.fev.2022/Folhapress

O déficit acumulado na região metropolitana de São Paulo, estimado pela Fundação João Pinheiro em 2019, alcançava 570 mil unidades. A estimativa é subestimada, sobretudo em relação à habitação precária.

Esse número é apenas parte das necessidades habitacionais da metrópole paulistana nos anos 2020. A ela precisa ser somada a demanda futura: as novas famílias que estão se formando nessa década, pelos (i)migrantes e refugiados que estão chegando na cidade e pela substituição das moradias obsoletas e demolidas.

Projeções da Universidade Federal Fluminense, contratada pelo finado Ministério das Cidades em 2015, revelaram que entre 2021 e 2030, a demanda demográfica (sem incluir outros componentes da demanda futura) irá requerer 717 mil novas moradias.

Assim, até 2030, serão necessárias 1,3 milhões de novas moradias na Região Metropolitana de São Paulo. Nas condições atuais de renda, financiamento e custo da moradia, cerca de 60% da demanda futura e 100% do déficit acumulado não têm condições de adquirir uma moradia no mercado.

Por isso, o poder público precisa criar mecanismos para garantir o acesso a moradia para cerca de um milhão de famílias apenas da região metropolitana de São Paulo. Segundo o mesmo cálculo, no Brasil, a necessidade é mais de 13 milhões de unidades até 2030.

Frente a esses números, muito pouco vem sendo feito desde 2015, quando a habitação deixou de ser uma prioridade nacional. Ela só é lembrada quando ocorre uma tragédia, como em Franco da Rocha e Petrópolis, ou quando um formador de opinião se indigna com famílias dormindo das calçadas.

Em nível nacional, o Programa Casa Verde Amarela, selo habitacional de Bolsonaro, paralisou a contratação na antiga Faixa 1 do Minha Casa Minha Vida, destinado aos mais pobres. No estado, Doria propôs a extinção da CDHU em 2020, reduzindo drasticamente a produção voltada para a baixa renda que, nos tempos do governador Mário Covas, tinha grande expressão.

Na década passada, as iniciativas do município foram irrisórias, sem prioridade nem competência na execução dos programas. A prefeitura paga auxílio aluguel para 22 mil famílias que tem direito a uma moradia por terem sido despejadas pelo município, algumas há mais de 15 anos.

Na gestão Doria/Bruno Covas foram entregues apenas 15 mil unidades. Relatório do Tribunal de Contas do Município mostrou que, em 2020, a Prefeitura gastou apenas 38% dos recursos previstos para moradia de baixa renda. Desde 2017, a prefeitura não cumpre a destinação obrigatória de 30% do Fundurb (Fundo de Desenvolvimento Urbano) para a habitação social.

Frente a esse quadro desolador, é relevante a gestão Nunes propor o investimento de R$ 8 bilhões, até 2024, para comprar 45 mil unidades habitacionais produzidas pelo setor privado. Embora seja pouco frente às necessidades, revela alguma prioridade.

Mas, também, falta de planejamento e de estratégia para enfrentar estruturalmente o problema e incapacidade da prefeitura produzir habitação, frente ao desmonte da máquina pública.

Uma iniciativa dessa magnitude, assim como o Programa Pode Entrar, deveria estar prevista no PMH (Plano Municipal de Habitação) que, enviado por Haddad há quase seis anos para Câmara Municipal, nunca foi concluído.

O PMH deve estabelecer uma estratégia de longo prazo para equacionar a questão habitacional, com um leque de programas, articulados entre si, para enfrentar as necessidades, estabelecendo metas, público-alvo, condições de financiamento e relação com o Plano Diretor, ou seja, dialogando com a política fundiária e urbana.

Como (felizmente) os editais para a compra de unidades estão em consulta pública, apresento sugestões para aperfeiçoar a proposta.

As moradias devem ser destinadas exclusivamente às famílias do Grupo 1 do Programa Pode Entrar (até 3 salários mínimos). Isso não está explicito nos editais. As famílias do Grupo 2 (de 3 a 6 salários mínimos) já são atendidas pelo mercado. Não há razão para a prefeitura investir nisso.

O programa estabelece uma meta de oito mil unidades por macrorregiões, que, com exceção do centro, abarcam, áreas centrais, intermediárias e periféricas (por exemplo, Leste inclui desde Brás até Guaianazes).

Como um dos objetivos do Plano Diretor é produzir habitação próxima ao emprego, as metas deveriam diferenciar as regiões, estabelecendo metas mais ousadas nas áreas melhor localizadas, assim como maior atratividade nos valores estipulados.

O programa prioriza os eixos ao longo do sistema de transporte coletivo, o que é positivo. Mas os eixos cruzam a cidade de uma ponta a outra. É necessário priorizar aqueles situados em áreas polarizadores de emprego.

Uma produção massiva de habitação (que, com outros programas, deveria superar largamente as 45 mil unidades propostas) tende a gerar uma grande demanda de terrenos, encarecendo seu valor.

É necessário utilizar, previamente, instrumentos urbanísticos para combater a especulação fundiária, como uma massiva notificação dos imóveis ociosos e subutilizados e a cobrança do IPTU progressivo.

Com esse mesmo objetivo, deveria ser priorizada a produção em Zonas Especiais de Interesse Social.

O programa peca por excesso ou falta de regulamentação. Define um padrão de moradia (de 32m² a 70m², com dois quartos) que está superado pela redução do tamanho das famílias e por novos arranjos domiciliares. Um terço das famílias no município tem apenas dois membros.

Por outro lado, não estabelece requisitos urbanos, como áreas verdes e equipamentos púbicos. Como está, produz habitação sem criar cidade.

Despejo Zero

Como não é possível, a curto e médio prazo, solucionar o problema habitacional em São Paulo e no Brasil, mesmo com vontade política e competência técnica, é premente estender a validade da medida que suspendeu os despejos e reintegrações de posse, reivindicação da Campanha Despejo Zero, que mobilizou milhares de pessoas em 23 estados no dia 17 de março. A norma vence dia 31/3.

Os efeitos da pandemia de Covid 19, que gerou a medida, ainda são sentidos pelo sem-teto. Mas não é só a pandemia que justifica a suspensão.

Como o direito à habitação é consagrado na Constituição, o Legislativo e o Judiciário deveriam tornar essa suspensão definitiva, até que todas as famílias ameaçadas de despejo sejam atendidas com moradia definitiva por algum programa habitacional público.

Talvez apenas uma medida extrema como essa faça com que a habitação passe a ser prioritária no Brasil.

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