Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Nabil Bonduki

O que a prefeitura está esperando para regulamentar dark kitchens?

Novo modelo de cozinha pode ter efeitos nefastos para a vida urbana e não deveria ser estimulado

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Na coluna do dia 13 de fevereiro, "Dark kitchens, que vieram para ficar, são boas para as cidades?", levantei uma série de questões e problemas relacionados com essa nova atividade, que se espalha pela cidade, gerando conflitos com os moradores do entorno.

As reclamações sobre barulho, odor, fumaça, gordura lançada nas casas e trânsito intenso de motociclistas, que se estendem até a alta madrugada, geraram um inquérito no Ministério Público e a interdição de uma obra que estava em andamento no Panamby, zona sul de São Paulo.

Dark kitchen, cozinha comercial utilizada exclusivamente para operações de delivery, na capital paulista
Dark kitchen, cozinha comercial utilizada exclusivamente para operações de delivery, na capital paulista - Eduardo Anizelli/Folhapress

Enquanto a prefeitura não criar norma específica para regulamentar esse novo uso, não contemplado na atual legislação, pois a atividade inexistia quando ela foi elaborada, os conflitos continuarão causando incômodos para os moradores e insegurança jurídica para os empreendedores, com inevitável judicialização.

As dark kitchens cresceram no Brasil com a explosão do delivery por aplicativo durante a pandemia. Conhecidas também como ghost kitchen (cozinha fantasma), é uma cozinha comercial utilizada apenas para operações de delivery. Equipadas para o preparo de refeições em larga escala, não têm salão para o atendimento de clientes no local.

Do ponto de vista urbano, elas geraram um novo ramo imobiliário que atrai investidores: o coworking de dark kitchen. Maior das empresas do setor, a Kitchen Central, é o braço brasileiro da global CloudKitchens, criada pelo cofundador e ex-presidente da Uber Travis Kalanick, que nela investiu US$ 300 milhões (cerca de R$ 1,4 bilhão).

Nesse negócio, que se expande com rapidez no Brasil, dezenas de cozinhas são concentradas na mesma edificação, situada em áreas localizadas próximas da clientela potencial. "É uma atividade imobiliária", afirmou Gustavo Nogueira, diretor de operações da Smart Kitchen.

O empreendedor licencia o edifício como um coworking, considerado "uso não residencial compatível" (nR1) ou "tolerável" (nR2) com a vizinhança residencial que predomina nas zonas mistas. Esses usos são regulamentados pela Lei de Uso e Ocupação do Solo (lei 16.402/20160) e pelo decreto 57.378/2016, que inclui uma tabela com a classificação das atividades.

Em seguida, ele aluga dezenas de pequenos espaços, com área de 20 m2 a 30 m2, preparados para receber cozinhas industriais, com pontos de água, esgoto, gás, energia e a estrutura de exaustão externa. Em um único prédio podem funcionar 30 ou mais cozinhas.

Cada um desses locatários monta sua cozinha e obtém individualmente as licenças para operar, como o alvará de funcionamento municipal e o alvará de fiscalização sanitária. Como a lei permite que, em zonas mistas, sejam licenciados pequenos restaurantes, pois eles são individualmente atividades de baixo impacto, a licença tem sido concedida.

A questão é que a somatória de dezenas de cozinhas, instaladas em um único edifício, sem cuidados especiais de recuos, isolamento e afastamento da vizinhança, geram um impacto de consideráveis dimensões, em termos de ruído, odor, vibração e tráfego de veículos, sobretudo motos.

Para o licenciamento, a legislação, no entanto, não considera os impactos cumulativos, como os que ocorre nesse caso. Isso precisa ser repensado. As dark kitchens deveriam ser licenciadas como um todo, levando-se em conta o "conjunto da obra", ou seja, o total de cozinhas que serão instaladas.

Observadas dessa forma, deve se considerar a possibilidade das dark kitchens serem enquadradas, de acordo com a classificação da lei 16.402/2016, "Uso não residencial especial ou incômodo à vizinhança residencial" (nR3). Depoimentos de moradores, registrados por uma reportagem do G1, embora possam ser exagerados, atestam os impactos da atividade:

"O cheiro de gordura entrava dentro da casa e não dava para lavar roupa porque a gordura grudava, a casa toda ficava impregnada (...) O barulho era equivalente a uma turbina de avião ligada no nosso ouvido todos os dias (...) um barulho que começa às 9h e termina às 4h da madrugada. A gente nunca tem um respiro, nunca tem paz, até que as máquinas desliguem. Isso enlouquece", afirmou a comunicadora Mariana Paker, moradora da Vila Romana.

De acordo com o relações públicas Phill Mindlin, do Brooklin, "você acorda e dorme com cheiro de pastel porque a operação não tem hora para acabar. Sem contar o barulho de turbina. (...) Eles causam estresse, sono, desconforto, insegurança e desvalorização do imóvel".

Enquanto não se estabelecer uma norma específica sobre essa atividade, o risco de judicialização é evidente. No Panamby, uma obra foi paralisada por uma representação promovida junto ao Ministério Público, que instaurou um inquérito civil e um procedimento administrativo na prefeitura, que embargou sob o argumento de que "não ia ser uma cozinha, mas 30".

Não se trata de confinar a atividade à Zona Predominantemente Industrial (que é reduzida e fica distante das regiões onde se concentra a clientela), mas que definir condições específicas para seu licenciamento e funcionamento que preserve a qualidade de vida dos moradores do entorno, considerando que a fiscalização de aspectos como odor, vibração e até mesmo ruído são de difícil execução.

Isso pode ser feito imediatamente, alterando-se o decreto 57.378/2016 para incluir essa atividade na tabela do Anexo 1, ou por meio de um projeto de lei, que trate a questão do delivery de maneira mais ampla, o que é cada vez mais necessário.

As dark kitchens são parte integrante de mudanças que, aceleradas pela pandemia, estão ocorrendo nas cidades e que precisam ser avaliadas com cuidado. Como todo o comércio eletrônico e delivery, elas podem ter efeitos nefastos para a vida urbana, provocando o esvaziamento do espaço público e a ruína do comércio (e dos restaurantes) de rua e local. Por essa razão, não deveriam ser estimuladas.

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