Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

Sonho que se sonha junto

Eu sou um pôr do sol que a gente viu de mãos dadas no arpoador, sou um delírio que a gente delirou juntos uma última vez

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Milly Lacombe

A notícia de que a partir daquele dia ela deveria ficar em casa atingiu Marluce como uma bomba. Funcionária do Detran e em idade de risco, foi dispensada do trabalho com a recomendação de que durante a pandemia não saísse.

Aos 62 anos, separada há quase 30, três filhos adultos morando em outros estados, Marluce tinha organizado a vida numa pequena cidade no litoral norte do Rio de Janeiro ao redor de amigas, com quem ia ao forró, à praia e fazia churrascos no fim de semana. Era como se distraía da solidão que sempre a apavorou desde que os filhos saíram de casa.

Pessoas no último dia do verão de 2021 na praia do Arpoador, no Rio de Janeiro
Pessoas no último dia do verão de 2021 na praia do Arpoador, no Rio de Janeiro - Reuters

As primeiras semanas passaram com um tipo de lerdeza que só o tempo medido em tédio e em medo consegue carregar. Marluce sentiu a tristeza bater e se aprofundar. A filha então recomendou que ela entrasse em alguma rede social para se distrair. Marluce resistiu, mas um dia decidiu tentar. Não demorou para encontrar Celso, um antigo namorado da juventude. Celso estava morando em Vitória, tinha dois filhos casados e vivia da aposentadoria. Conversaram até de madrugada.

Na manhã seguinte, Marluce acordou mais tarde do que o usual e quando desbloqueou o celular viu uma mensagem de Celso: “Bom dia, meu Mar”. Marluce sorriu. No final de tarde em que se conheceram, no arpoador em 1980, Celso perguntou o nome dela e ela respondeu tão timidamente que só a primeira sílaba saiu. Celso passou então a chamá-la de “meu Mar”. Marluce ficou anos sem se lembrar desse detalhe. Colocou o telefone de lado e, sorrindo, levantou para ir fazer o café.

À noite, jantaram juntos pela tela do celular. Celso contou que um de seus filhos era engenheiro nos Estados Unidos e o outro, jornalista em São Paulo. Marluce disse que a filha era antropóloga e que os dois filhos trabalhavam com tecnologia da informação. Celso explicou que tinha se separado há alguns anos, Marluce falou de como criou os filhos praticamente sozinha, de como foi difícil, do pânico que tinha de não conseguir colocar comida na mesa.

Eles passaram a se encontrar virtualmente para tomar café da manhã e para jantar. Falavam do tempo em que foram namorados, dos sonhos que ainda tinham, de como seria bom se pudessem se ver e se abraçar. Começaram a planejar o reencontro para quando a pandemia desse uma trégua. Ele iria até ela, chegaria com flores, faria o jantar, passariam a noite juntos. Quase um ano de confinamento e eles agora viam filmes com o celular ligado, comendo pipoca, comentando cenas, reclamando dos finais tristes, rindo e chorando juntos. A vida, afinal, voltou a ser de alguma forma agradável.

Sexta-feira passada Celso não mandou bom dia. Marluce disse a si mesma que ele estava ocupado e apareceria mais tarde. Às sete horas, horário em que todos os dias jantavam, ela decidiu ligar para o celular dele. A voz de uma mulher atendeu. Marluce sentiu o corpo suar: quem era aquela mulher? “Eu queria falar com o Celso”, disse brava. “O Celso faleceu hoje pela manhã”, respondeu a voz. Marluce sentiu o chão rachar debaixo de seus pés. “O que houve?”, conseguiu sussurrar. “Apendicite. Precisou ser internado às pressas, o hospital estava lotado por causa da pandemia, o número de salas cirúrgicas foi reduzido para aumentar os leitos de UTI, ele não teve como ser operado. Eu sou a nora dele. E você?”.

Depois de um longo silêncio, Marluce buscou forças para, antes de desligar, dizer: “Eu sou um pôr do sol que a gente viu de mãos dadas no arpoador, sou um delírio que a gente delirou juntos uma última vez, sou o encanto de uma segunda chance. Por causa dele, voltei a sonhar, voltei a ser mar”.

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