Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

Um dia antes

Eu continuava chorando e você perguntava, sem desviar os olhos do computador, se era algo com o trabalho, se era a deprê de ler os jornais

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Minha traição estava marcada para uma quarta-feira, às 17h30. Na terça, pouco depois do almoço, sentei na sua frente e desatei a chorar.

Fantasiei que você entenderia tudo e trancaria a porta. Fantasiei que você se desesperaria e jogaria a chave pela janela. E me olharia, finalmente, como aquele homem que vimos nas férias, em um restaurante de hotel, olhando para namorada enquanto ela voltava com o prato cheio de sobremesas.

A mulher com a cor das primeiras semanas, com o viço e o cabelo de quem tinha ouvido umas sacanagens na orelha havia menos de uma hora.

Você nunca, nunca, nunca me olhou assim.

Lembrei de um namorado que me dizia: “Você me dá pau duro no coração”. Ele acompanhava meus movimentos exatamente como aquele sujeito observava a companheira no restaurante do hotel.

E nossa relação durou coisa de dez semanas. Um dia seu peito brochou. Lembro que eu estava deitada no sofá e ele fazia um carinho no meu calcanhar, como se eu fosse uma doente que ele visitava no hospital. Me tocando do jeito mais distante possível: “Não sei por quê, mas eu sou assim: eu paro de sentir”.

Então, só agora isso fica claro, eu jurei pra mim que esse tipo de olhar, o olhar do homem viciado em paixão, do homem tão dependente do começo que não consegue chegar nem no próximo feriado, tão adicto em suas químicas solitárias que nem é pra mim que ele olha (afinal, então, alguém olha pra alguém?), eu jurei que nunca mais me daria o deleite opressor e breve desse encantamento. E me dei você, que nunca, nunca, nunca me viu voltando com um prato de sobremesa ou com dor na lombar ou com o cabelo mais curto ou parindo ou com cara de que te trairia no dia seguinte, às 17h30.

Eu continuava chorando e você perguntava, sem desviar os olhos do computador, se era algo com o trabalho, se era a deprê de ler os jornais, se era um dos meus enjoos. E eu chorava de acabar o ar, como chorei quando saí da casa da minha mãe (que me olhava tanto, tanto, que me ultrapassava e inventava o que via). Porque eu sabia que ali acabava uma parte demasiadamente importante da história da minha vida. E que no fim seria reconhecida como tal: aquele tipo de amor que eu vivi, ainda que eu tenha sentido saudade, todos os dias, do outro tipo. Ainda que no dia seguinte uma enxaqueca de culpa e uma gastrite de medo acabassem por me deixar de cama, seria pra sempre como se eu tivesse ido.

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