Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Nosso estranho amor

O bem partido

De madrugada, depois de uns 45 áudios em que se despedia dizendo eu te amo, ele terminava o namoro

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Tamanho era o seu medo de que as coisas acabassem, ele via filmes na madrugada justamente para que as histórias continuassem enquanto ele adormecia (e para que o sono seguisse enquanto o filme acabava). E assim, sem se dar conta, encerrava enredos antes da hora e tinha seus sonhos interrompidos antes do tempo (por uma dor na cervical torta).

Ficava ansioso, nervoso, empolgado, arrasado, andava pulando pela casa, deprimia, só falava em morte, ria alto, falava rápido, ficava angustiado, tudo isso em uma hora, e sua grande reclamação era ter se tornado um cara que não conseguia mais sentir as coisas.

Rodeado por uma biblioteca gigantesca de histórias clássicas e geniais de paixão, buscava a mais simplória punheta, através de personagens insignificantes, fúteis e idiotizadas da internet.

De madrugada, depois de uns 45 áudios em que se despedia dizendo eu te amo, ele terminava o namoro - VadimGuzhva - stock.adobe.com

Não queria filhos, mas mantinha em sua casa um quarto sempre arrumado para receber o sobrinho adolescente. Não queria família, mas conversava com a mãe uma quantidade indecente (e jamais vista na vida adulta de um homem velho) de vezes por dia.

Se percebesse qualquer traço de ciúmes em meu comportamento, sumia por uma semana. Quando ficava inseguro, e era quase sempre, pedia desesperado que eu jamais desaparecesse de sua vida.

Me ligava assim que acordava, antes de comer qualquer coisa, mandava fotos das comidas, avisava que ia fazer xixi, avisava que ia escovar os dentes, mandava foto da escova com a pasta dentifrícia e jamais tomou sequer um banho sem antes me informar. Me escrevia 37 vezes por dia pra contar uma cena de filme ou um trecho de livro. Me escrevia pra perguntar se eu ainda estava acordada. E na madrugada, depois de uns 45 áudios em que se despedia dizendo “eu te amo”, terminava o namoro, porque não gostava de dividir a própria vida e nem gostava de mim.

De pijama e chinelo, no meio da tarde, listava com desdém todas as pessoas preguiçosas que conhecia. Vinte anos mais velho do que eu e sem ver uma academia desde o último solstício de inverno do século passado, olhava meu corpo claramente saudoso de algum affair com uma jovenzinha de carne mais dura.

Escapava de qualquer conversa mais profunda usando suas frases decoradas de livros e se dizia enojado das pessoas que, ao não decorar frases de livros, não podiam ter conversas mais profundas.

Me abraçava forte, pesado, apertado, e dizia “me larga”. Me mandava embora, me dizia coisas cruéis, pra depois correr até a porta do elevador e reclamar “você sempre vai embora”.

Nunca queria sair, nunca queria ver gente. Da janela imensa da sala, sempre planejava o dia seguinte vendo gente, indo a vários lugares.

Toda a sua vida era o trabalho, toda a sua vida era fugir do trabalho; toda a sua vida era ler poesias, toda a sua vida era a incapacidade de reter a beleza das relações; toda a sua vida era dormir, toda a sua vida era fazer uso de estimulantes para não dormir.

Quantas vezes na vida você quis arrumar o que sua avó chamaria de “um bom partido” e só conseguiu mais um cara bem partido?

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