Nosso estranho amor

Paixões, desencontros, estabilidade e loucuras segundo Anna Virginia Balloussier, Pedro Mairal, Milly Lacombe e Chico Felitti. Uma pausa nas notícias pra gente lembrar tudo aquilo que também interessa demais.

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Vivi viu Lígia e ficou parada na Parada

Ligia tinha acabado de voltar de uma temporada em San Francisco, e seu visual transparecia isso; Vivi, uma filha de manicure de Osasco, usava coturno e vestido xadrez

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São Paulo

Era 1997 e a avenida Paulista estava parada. O que causava o trânsito era um grupo inédito à via mais famosa da cidade. Mais de mil lésbicas, gays, transexuais, travestis e drag queens coalhavam a calçada do prédio da Gazeta.

Na rua, uma Kombi equipada com um microfone e duas caixas de som esperava em ponto morto para partir. Mas a polícia e um mar de curiosos impedia a primeira de sair do lugar. "Falavam que faltava uma permissão, um brevê, uma assinatura, um sei lá o quê", relembrou a drag Kaká di Polly em dezembro último, semanas antes da sua morte. E, desacostumada a lidar com burocracias, Kaká resolveu o imbróglio de maneira dramática: se jogou no meio da avenida e fingiu um desmaio, para que policiais viessem a acudir e deixassem a primeira faixa livre para sair a primeira Parada.

Arco-íris montado na edição do ano passado da Parada do Orgulho LGBTQIA+ - Karime Xavier - 19.jun.22/Folhapress

Assim nasceu o evento, que hoje é o maior do mundo. Mas que na época aconteceu por um triz. A marcha foi divulgada em panfletos, com um número de telefone para quem tivesse dúvidas. O ativista Beto de Jesus conta que a questão mais recorrente era de se as pessoas poderiam ir mascaradas, porque tinham medo de ser reconhecidas na rua. Mas quase 2.000 pessoas apareceram, e foram com medo mesmo. Enquanto Kaká e sua falsa síncope ocupavam a polícia, a Kombi saiu. O bonsai de multidão começou a brandir a bandeira de arco-íris de 50 metros, costurada pela mãe da ativista Adriana Arco-Íris,

O evento andou e parece que o mundo andou junto com ele nos últimos 26 anos. "Muitas pessoas que estavam na calçada observando e vieram para dentro da marcha. Foi uma coisa muito bonita de pertencimento, de sentimento de corpo, de uma comunidade que queria se mostrar, queria ter a sua voz marcada. Mais do que isso, que queria dar visibilidade ao seu rosto. Isso foi lindo", contou o ativista Beto de Jesus em entrevista para o site"Vice".

O grupo gritava pedidos de direitos, enquanto marchava pela Paulista. A drag queen Silvetty Montilla ia na garupa de uma moto. Mais de uma hora depois do evento sair, Vivi viu Ligia e ficou parada. "Ela era ela." Ligia Suzano tinha acabado de voltar de uma temporada em San Francisco, e seu visual transparecia isso. Dragão tatuado no braço esquerdo, colete jeans e cabelo moicano. Vivi, uma filha de manicure de Osasco que usava coturno e vestido xadrez, ficou vidrada.

"Ela não me deu a menor trela no começo", conta Vivi. "Eu não vi ela até o fim da Parada", se defende Ligia. "Até porque eu não tava lá pra ficar de butuca. Era um protesto, porra," O importante é que, assim que o evento cruzou a linha de chegada, na praça Roosevelt, as duas já tinham trocado olhares e sorrisos. "A gente foi beber num boteco embaixo do Edifício Redondo. E na segunda cerveja as mãos já estavam dadas embaixo da mesa", relembra Ligia.

"Eu não quero fazer a piada de que sapatão já casa no primeiro encontro. Mas a gente casou no primeiro encontro", diz Vivi, e assim arranca gargalhadas de Ligia. "Teve um encontro de muito afeto ali." Mas erra quem pensa que a história das duas ia evoluir com a do evento em que se conheceram. As duas nunca mais foram a uma Parada. Meses depois de se conhecerem, estavam de mudança para San Francisco, para onde Ligia tinha decidido voltar. E jamais calhou de voltarem para São Paulo em junho.

As duas rodaram o mundo juntas e se apoiaram em mudanças profissionais drásticas. Vivi virou ceramista nos EUA e Ligia teve que se adequar, já que trabalhava no financeiro de uma empresa de filmes para máquinas fotográficas. Hoje, Vivi mora numa comunidade no interior da Califórnia e Ligia trabalha em San Francisco, na sede de uma rede social, que veio inclusive para substituir os filmes de máquina fotográfica. Elas se veem todo fim de semana, na cidade ou no campo.

As duas vivem juntas, por mais que morem separadas. "É uma escolha pra vida toda. Não importa se a gente ficar um, dois, dez dias sem se ver. É um sim que eu repito a cada dia, quando eu acordo, eu me pergunto ‘Eu quero ficar com ela?’. E a resposta, até hoje, sempre foi ‘Eu quero ficar com ela’."

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