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Julio Wiziack é editor do Painel S.A. e está na Folha desde 2007, cobrindo bastidores de economia e negócios. Foi repórter especial e venceu os prêmios Esso e Embratel, em 2012

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Intrigante é como o povo consegue viver, diz filósofo sobre o brasileiro

Para Mario Sergio Cortella, com pouco acesso à educação, povo maneja melhor o dinheiro do que os mais escolarizados

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Brasília

Mario Sergio Cortella, 69, é professor universitário, educador, palestrante, autor de 50 livros e, recentemente, mergulhou na era digital com mais de 20 milhões de seguidores. Seus vídeos, com reflexões sobre trabalho, diversidade, entre outros temas, ganharam popularidade. No fim de 2023, Cortella virou personagem de quadrinhos acompanhado da coruja [símbolo da filosofia] Philó. As tirinhas, criadas a partir de ideias retiradas de seus livros, serão publicadas em suas redes sociais. Serão duas por semana.

O filósofo Mario Sergio Cortella
O filósofo Mario Sergio Cortella - Ronny Santos - 19.jan.2023/Folhapress

Seu pai era bancário e você chegou a morar em uma agência. O que isso ensinou sobre o dinheiro?
Nunca me esqueço do meu espanto quando entrei no cofre [da agência] e vi aquele acúmulo de maços. Meu pai disse de forma firme: ‘o que não é teu, não é teu’. Na filosofia, a ideia mais marcante disso é a do Millôr Fernandes, que dizia: ‘o importante é ter sem que o ter te tenha’. Sendo filho de bancário e de professora, aprendi a não colocar todos os pés em uma só canoa, pela possibilidade dela apresentar alguma rachadura. E, na questão do pecuniário, não tenho desprezo, nem adoração.

O brasileiro pensa da mesma forma?
A pauperização acaba conduzindo à ausência de um aprendizado [financeiro]. Dizemos que, no Brasil, existe uma cultura muito restrita de poupança, mas, para que se tenha poupança, há uma suposição prévia de sobra [que inexiste]. Por isso, a nação rica com a população empobrecida acabou nos deixando com uma certa suspeita em relação à possibilidade da propriedade. Aprendemos a lidar com a oferta de crédito como uma dádiva. E o serviço público, como um favor, em vez de ser tratado como sendo uma devolução tributária.

Isso é bem diferente de ter dinheiro para poupar ou para fazer uma viagem de férias.
A rarefação de uma escolarização reduz esse repertório de soluções [financeiras]. Mas isso não significa que a pessoa não sobreviva. Aliás, uma das coisas mais intrigantes no Brasil é como é que esse povo vive. Como consegue comer, ter medicamento? Tem, claro, mas de modo precário. O que significa que [esse povo] sabe manejar esses recursos até melhor do que outras camadas com escolarização mais elevada na medida em que não há desperdício.

Para usar uma expressão antiga do [Karl] Marx, quem está só no reino da necessidade não tem como adentrar no reino da liberdade. Há uma diferença entre ser livre "de" e ser livre "para". Você é livre da fome, do desemprego. Quando você já é livre "de" é livre para escolher. Então, o reino da necessidade exige uma capacidade de sobrevivência. Quando se adentra no outro circuito [o da liberdade], a dificuldade é pela ausência de ferramentas. Não há aí nenhum desprezo ao que a gente chama de sabedoria popular. Ao contrário, há uma valorização. Mas ela não é suficiente [como ferramenta].

Como filósofo, o que você ‘vendeu’ atuando em empresas?
Nos 40 anos mais recentes, passei a ter uma presença maior no mundo corporativo, para além de palestras. É impressionante o quanto se buscou trazer a filosofia para o cotidiano, porque ela permite que se olhe para além do óbvio.
Na Alpargatas, participei de reflexões sobre o que significa usar um chinelo, que era um símbolo da pobreza. Hoje a Havaianas chega ao mundo todo como objeto de desejo. Dentro da Gerdau, ajudei na formação daqueles que chegavam para trabalhar. Eles me chamavam para uma atividade sobre diversidade, dada a presença internacional do grupo.

Qual é o tema das empresas hoje?
Uma reflexão sobre seu propósito. Isso coaduna com as novas gerações, que chegam [às empresas] com uma percepção de sentido no que fazem. Elas não veem aquilo apenas como um emprego. Outro tema é a ética. Gosto de dizer que ética não é cosmética. E, mais ainda, de que ética é um valor negocial [que importa para o negócio], uma linha [de atuação]. As empresas têm de fazer o certo do jeito certo. E, em terceiro lugar, as práticas ESG.

Existe, de fato, um compromisso com as práticas sustentáveis?
Não acho que seja uma consciência, porque a gente ainda não conseguiu erotizar a ecologia. Ela não é um objeto de desejo. A urgência climática dos tempos que estamos vivendo, e não tem como não enxergar seus efeitos, surge como uma presença imediata. Isso aparece nas corporações em vários momentos, os quais já presenciei, e é necessário que a gente aproveite essa moda.
A história de Tales [de Mileto] ilustra bem isso. Para saber como seria a colheita de azeitonas e o armazenamento [da safra] no ano seguinte, os produtores locais tinham o hábito de consultar os deuses e as entranhas dos animais.
Tales, como um estudioso do que viria ser chamado de matemática, decidiu, além de consultar os deuses, dar uma olhada na série histórica: quanto choveu no ano anterior, no retrasado. Queria ver se o clima indicava, afinal, se produziriam mais ou menos azeitonas.
Os deuses disseram que haveria escassez e os estudos dele mostraram o contrário. Tales, então, comprou e alugou todos os recipientes que podia e os guardou.
De fato, houve uma explosão na produção de azeitona no ano seguinte e as pessoas não tinham onde guardá-las. Ele tinha.
O que essa história tem a ver com ESG? A filosofia nos mostra que temos de olhar para o futuro como uma coisa que virá também a partir da nossa ação.

Mas como se erotiza a ESG?
Numa sociedade de mercado, a gente já conseguiu fazer um par de tênis, canetas, uma camiseta branca (T-shirt), carros, cigarro se tornarem objetos de desejo. A publicidade cuidou disso.
Fui fumante durante 30 anos. Uma parte do meu desejo, fora o vício da substância, vinha do glamour que carregava, de vincular o cigarro à liberdade, às grandes paisagens, à masculinidade. [Os atores] James Dean e Marlon Brando conseguiram erotizar uma T-shirt branca.
Não conseguimos ainda transformar ESG em desejo. No momento, ela aparece como uma coisa de futuro, de necessidade. Quando conseguirmos, as organizações entram nesse circuito e vira um negócio natural, uma tendência de mercado.


RAIO-X | Mario Sergio Cortella, 69

Formação: Tentou a vida monástica em um convento da Ordem dos Carmelitas Descalços, mas desistiu para seguir os estudos. Graduou-se em filosofia (Faculdade Nossa Senhora Medianeira) com mestrado e doutorado, sob orientação de Paulo Freire, em Educação (PUC-SP)

Carreira: Professor titular do Departamento de Teologia e Ciências da Religião e de pós-graduação em Educação da PUC-SP (1977 a 2012); professor-convidado da Fundação Dom Cabral (desde 1997); professor da Fundação Getúlio Vargas (1998 a 2010). Foi secretário de Educação de São Paulo (1991–1992) e membro-conselheiro do Conselho Técnico Científico da Educação Básica da CAPES/MEC (2008–2010)

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