Patrícia Campos Mello

Repórter especial da Folha, foi correspondente nos EUA. É vencedora do prêmio internacional de jornalismo Rei da Espanha.

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Patrícia Campos Mello

Estados brasileiros sucumbem à epidemia de leis contra fake news

Ceará e Paraíba sancionaram legislação; no mundo, pandemia tem sido pretexto para restringir liberdades

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O governador do Ceará, Camilo Santana, sancionou nesta quinta-feira (30) uma lei que criminaliza a disseminação de fake news.

A lei, de autoria da deputada estadual Augusta Brito (PCdoB), estabelece multa de R$ 224 a R$ 2.240 para quem “dolosamente divulgar por meio eletrônico ou similar notícia falsa sobre epidemias, endemias e pandemias no Estado do Ceará”.

Moradores com máscaras de proteção passam em frente a cartaz que alerta contra a divulgação de notícias falsas sobre o coronavírus em Hanói, no Vietnã
Moradores com máscaras de proteção passam em frente a cartaz que alerta contra a divulgação de notícias falsas sobre o coronavírus em Hanói, no Vietnã - Kham - 14.abr.20/Reuters

O Ceará, assim como o resto do país, tem sido palco de uma avalanche de fake news durante a epidemia de coronavírus.

No estado, houve ampla circulação de foto em que o governador supostamenteestava em uma festa durante a quarentena, enquanto pedia aos cidadãos que ficassem em casa (ainda não havia sido decretada a quarentena), áudio falso de um suposto assessor dizendo que o objetivo da quarentena seria prejudicar o presidente Jair Bolsonaro, entre inúmeras outras mentiras.

“Tem sido gigantesca a quantidade de mentiras e maldades feitas pelas redes sociais, tentando confundir a população; e este momento é de ter responsabilidade, serenidade, de deixar questões políticas e eleitoreiras de lado”, disse Camilo em uma live no Facebook nesta quinta-feira.

Mas a lei que o governador prometeu sancionar é perigosamente vaga.

A definição que a legislação dá a fake news é, no mínimo, estranha: “Notícias falsas ou 'fake news' são notícias falsas publicadas por veículos de comunicação como se fossem informações reais. Esse tipo de texto, em sua maior parte, é feito e divulgado com o objetivo de legitimar um ponto de vista ou prejudicar pessoa ou grupo (geralmente figuras públicas)”.

Bom, normalmente, fake news não são publicadas por veículos de comunicação, e sim por blogs, ou viralizam por WhatsApp e Facebook. Essa caracterização abre brecha para criminalização de noticiário legítimo.

“Nossa preocupação é com aqueles que, sob anonimato e com interesses escusos, divulgam informações sabidamente falsas, especialmente no meio digital e nas redes sociais, gerando instabilidade, pânico, danos morais, patrimoniais e em casos mais graves, a morte”, diz o texto da lei.

De novo, trata-se de redação perigosa –irão multar pessoas que repassam boatos? Como provar que essas pessoas repassaram boatos “de propósito”, sabendo que eram falsos, para prejudicar pessoas públicas?

No fim de março, o governo da Paraíba havia sancionado uma lei semelhante, prevendo multa de até R$ 10 mil para quem compartilhar fake news sobre coronavírus.

Entendemos que a motivação é nobre e que existe uma quantidade avassaladora de notícias falsas circulando, que põem em risco a saúde das pessoas.

Mas existe outro perigo, real, que é a erosão dos direitos civis e da liberdade de expressão.

“Combater a desinformação por meio de leis como a proposta pela Assembleia Legislativa do Ceará pode criar mais problemas do que solucionar, porque coloca nas mãos de autoridades a definição de conceitos que elas nem sempre têm competência para avaliar”, diz o presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Marcelo Träsel.

“Primeiro, o decreto não apresenta uma definição clara de notícia falsa, oferecendo muita liberdade às autoridades para enquadrarem alguma mensagem no conceito. Além disso, maioria das pessoas divulga boatos e desinformação acreditando serem verdadeiros, então como o dolo será comprovado? Como o texto é vago quanto ao conceito e o dolo é difícil de caracterizar, muitas pessoas podem ser condenadas injustamente a pagar multas, o que em tese poderia levar a população à autocensura. Além disso, há muitas autoridades no Brasil que consideram a ciência em torno da Covid-19 algum tipo de conspiração. Um promotor ou juiz negacionista poderia considerar uma notícia ou manifestação em rede social relatando a situação em UTIs ou defendendo o isolamento social, por exemplo, como notícias falsas.”

Segundo o COVID-19 Civic Freedom Tracker, monitor de legislação que infringe direitos civis, já são 26 países que implementaram leis ou regulamentações contra fake news desde o início da pandemia de coronavírus.

Em diversos desses países, as leis abrem caminho para abuso de poder e repressão à liberdade de expressão.

Na Bolívia, pessoas que espalharem desinformação podem ser punidas por crimes contra a saúde pública e pegar até 10 anos de prisão.

No Egito, dezenas de sites de notícias e contas em redes sociais foram derrubados ou bloqueados por supostamente espalhar “informações falsas” –o que incluía estudos científicos dizendo que os casos no país estavam subestimados.

Na Hungria, quem “distorcer” ou publicar “informações falsas” pode ser condenado a até 5 anos de prisão.

Na Malásia, quem espalhar “fake news” pode pegar até um ano de cadeia e uma multa de até US$ 11.400 (cerca de R$ 62.600)

Outros foram ainda mais longe: Iêmen, Marrocos, Jordânia e Emirados Árabes proibiram até a circulação de jornais impressos, afirmando que eles podem ser grande fonte de contaminação por Covid-19.

A ciência não aponta para indícios de que os jornais sejam fonte importante de contaminação –não houve nenhum caso de infecção por jornais, e os vírus sobrevivem muito menos em material poroso como o papel jornal do que em superfícies metálicas, por exemplo.

Essas leis mostram como, sob pretexto de combater as notícias falsas, muitos governos vêm se aproveitando para concentrar poder e restringir a liberdade de imprensa.

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