Paul Krugman

Prêmio Nobel de Economia, colunista do jornal The New York Times.

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Paul Krugman

Os mitos distópicos da América republicana

A Grande Mentira sobre a eleição está embutida numa mentira ainda maior

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A dessensibilização é uma coisa incrível. Neste ponto, a maioria dos observadores políticos simplesmente aceita como fato consumado que a maioria esmagadora dos republicanos acredita na Grande Mentira, de que a eleição de 2020 foi roubada –afirmação sem nada que a sustente, nem mesmo anedotas plausíveis.

O que eu acho que não é totalmente avaliado, entretanto, é que a Grande Mentira está embutida numa mentira ainda maior: a afirmação de que o Partido Democrata é controlado por esquerdistas radicais cujo objetivo é destruir os Estados Unidos da América como os conhecemos.

E, essa mentira, por sua vez, deriva muito da capacidade de persuasão de uma visão grotescamente distorcida de como é a vida na América azul, a democrata.

Pessoa segura placa 'Save America' em apoio aos candidatos do Partido Republicano - Mario Tama / AFP

As elites urbanas são constantemente acusadas de não entenderem a América Real®. E, para ser justo, a maioria dos moradores das grandes cidades provavelmente não tem uma boa ideia de como é a vida nas áreas rurais e cidades pequenas, embora seja duvidoso que essa lacuna justifique o imenso número de reportagens que entrevistam eleitores de Trump sentados em lanchonetes.

Mas eu argumentaria que as percepções errôneas da direita sobre a América democrata são muito mais profundas –e muito mais perigosas.

Comecemos pela política. Outro dia, Dave Weigel, do Washington Post, reportando a campanha eleitoral, observou que muitos candidatos republicanos afirmam que os democratas estão deliberadamente minando a nação e promovendo a violência contra seus adversários; alguns chegam a alegar que já estamos numa guerra civil.

Alguns (muitos?) desses candidatos vêm ganhando primárias, o que sugere que a base do Partido Republicano concorda com eles. Na verdade, eu gostaria de ver algumas pesquisas na linha daquelas que mostram que a maioria dos republicanos aceita a Grande Mentira.

Quantos republicanos acreditam que o presidente Biden e outros líderes democratas são radicais de esquerda, na verdade marxistas? Da mesma forma, gostaria de saber quantos republicanos acreditam que os manifestantes do Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em livre tradução) saquearam e queimaram grandes partes das principais cidades dos Estados Unidos.

A realidade é que o Partido Democrata moderno é uma coalizão moderadamente de centro-esquerda, o que os europeus chamariam de social-democratas, e relativamente conservadora. Para tomar uma medida, não consigo pensar em nenhum democrata proeminente –na verdade, nenhum congressista democrata– que tenha expressado admiração por qualquer regime autoritário estrangeiro.

Isso contrasta com a admiração generalizada dos conservadores pelo húngaro Viktor Orban, que recentemente denunciou outros europeus por "misturar-se com não-europeus" e declarou que não quer que a Hungria se torne um país "mestiço".

Na frente da violência doméstica, um estudo da Liga Antidifamação concluiu que 75% das chacinas domésticas relacionadas a extremistas de 2012 a 2021 foram cometidas pela direita, e apenas 4% pela esquerda.

Finalmente, sobre o Black Lives Matter: os protestos foram na verdade extremamente pacíficos. Sim, houve alguns incêndios criminosos e saques, com danos totais a propriedades geralmente avaliados em US$ 1 bilhão a US$ 2 bilhões. Pode parecer muito, mas os Estados Unidos são um grande país, então o número precisa ser visto em perspectiva.

Aqui está um ponto de comparação. Em abril, Greg Abbott, governador do Texas, fez uma manobra política na fronteira com o México, impondo temporariamente verificações extras de segurança que causaram grande lentidão no tráfego, interrompendo os negócios e causando prejuízos em muitos produtos. As perdas econômicas totais foram estimadas em cerca de US$ 4 bilhões; isto é, alguns dias de teatro de segurança na fronteira parecem ter causado mais danos econômicos do que cem dias de protestos em massa.

No entanto, apontar esses fatos provavelmente não mudará muitas mentes. Tampouco parece haver alguma maneira de mudar a percepção, também mencionada naquele artigo do Post, de que uma atitude negligente em relação ao policiamento transformou as grandes cidades dos Estados Unidos em antros perigosos. É verdade que o crime violento aumentou durante a pandemia, mas aumentou tanto nas áreas rurais quanto nas urbanas. Apesar desse aumento recente, a violência em muitas cidades é muito menor do que era pouco tempo atrás.

Na cidade de Nova York, os homicídios até agora, este ano, estão um pouco abaixo do nível de 2021. E, em 2021, foram 78% mais baixos do que em 1990 e 25% mais baixos do que em 2001.

Como documentou Justin Fox, da agência Bloomberg, Nova York é realmente muito mais segura do que as pequenas cidades do interior americano. Los Angeles também teve em longo prazo uma grande queda dos homicídios, assim como a Califórnia de modo geral. Algumas cidades, principalmente Filadélfia e Chicago, igualaram ou superaram as taxas de homicídios do início da década de 1990, mas não são representativas do quadro mais amplo.

Mas quem na base republicana reconhecerá essa realidade? Sempre que menciono a relativa segurança de Nova York, recebo uma onda de emails dizendo, na verdade, "Você não pode acreditar nisso".

O fato é que um grande segmento do eleitorado dos Estados Unidos comprou uma visão apocalíptica da América que não tem relação com a realidade do que a outra metade pensa, como se comporta ou vive. Não precisamos especular se essa fantasia distópica pode causar violência política e tentativas de derrubar a democracia; já causou. E isso provavelmente vai piorar.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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