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Aprendizados lá no fundo do quintal

Pensar em moda é dar visibilidade à base construída no chão da fábrica

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Por Lidi de Oliveira

A imagem mais marcante da minha infância, na Baixada Fluminense, é minha mãe na máquina de costura e ao lado minhas tias, minhas vizinhas. Eu era e ainda sou conhecida como “a filha da costureira”. Eu acordava e elas estavam lá, voltava da escola e estavam costurando. Eu ia dormir e minha mãe estava assistindo novela e terminando suas confecções.

O trabalho e a maternidade, do “fundo do quintal”, se misturavam a todo momento. E essa fusão de papéis sociais vinha acompanhada com explorações dessas vidas, a solidariedade entre elas, que entre criadoras e crias costuravam as possibilidades de sobrevivermos. Em volta das cores, estampas, das criações periféricas de um ateliê que, fio a fio, disputava o sorriso delas, pois muitas tinham como tecido de suas vidas a violência.

Em roda, uma na máquina de costura reta, a outra na overlock, mainha na mesa de corte, o cheiro do café e do bolo de milho, a TV ligada no programa sobre famosos, a incerteza se amanhã terá trabalho remunerado, a capa do jornal falando de mais uma jovem assassinado, tem que trocar a fralda da criança. Crianças? Vocês viram as crianças? Estão na rua e o camburão chegou.

As revistas espalhadas, as risadas, o cuidado coletivo. E, então, chega pela janela que Maria sofreu outra violência do marido. Fazer arquitetura no corpo da outra, medir, escutar, vestir cada uma para que se sinta a pessoa mais linda do mundo. Quantas trajetórias cruzam nossas roupas, quantas vivências poderiam nos transformar se os tecidos usados falassem.

O conhecimento habita nossas tramas. Um mundo conectado por informações, eu te pergunto: Quem faz suas roupas? Quem costura suas roupas? Quem colhe o algodão dos seus tecidos? No Brasil, mulheres fazem parte de 75% da mão de obra da moda. E quais as condições de trabalhos?

Desigualdades sociais, resistências, justiça social, exploração infantil. Recontam em cada agulha, desfazem em cada escuta. 

Seja em Santa Cruz do Capibaribe, Toritama ou Baixada Fluminense, seja em Bangladesh, Cariré ou com as costureiras imigrantes em São Paulo, pensar em moda é visibilizar a base que é construída no chão da fábrica, entre retalhos, no sertão, na agricultura familiar, 15 horas por dia trabalhando, confeccionando o jeans, o chitão. Cada uma costurando para vestir outras. Todas elas aprendendo para ensinar as próximas gerações.

Lá no fundo do quintal o mundo reflete no som das máquinas, na resistência da alta-costura de baixa renda. Acreditamos que roupa é escudo, é abraço, é memória. Nada de silêncio. Descostura. Veste. Reza. A fé em santa Luzia, Iemanjá, Jeová. Arremata! Igual ao Sol que passa as roupas no quintal. Uma força mais forte que o café da minha mãe. Na pedagogia do quintal há gira de criação, rosto de mulher. Corpo de resistência. Cor de terra. Sotaque da memória.


Lidi de Oliveira é cria do Parque Paulista (Baixada Fluminense), de uma família de costureiras nordestinas. Criou o Costura Nem, com aulas de costura-modelagem-criação para pessoas trans na Casa Nem (Rio) e o Laboratório Arremate, espaço itinerante de criação, moda e memória periférica, também no Rio.

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