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O Enem é, sim, instrumento para corrigir injustiças sociais

Adiamento do exame deveria ocorrer até que haja retomada das atividades em escolas e pré-vestibulares

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Por Marcyllene Maria, Juliana Marinho, Mariana Xavier e Yasmin Monteiro

Enquanto as mobilizações pelo adiamento do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e os questionamentos ao Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) e ao Ministério da Educação se intensificam, o Brasil se torna o terceiro país com maior número de casos confirmados da Covid-19 no mundo. E, pior, sem indícios de que a crise humanitária e de saúde provocada pela pandemia esteja perto do fim.

O projeto de lei nº 1.277, que determina a prorrogação de provas para acesso ao ensino superior em função da pandemia, foi aprovado pelo Senado e segue para votação na Câmara. Sob pressão, o governo anunciou o adiamento. O presidente do Inep, Alexandre Lopes, chegou a declarar que as datas poderiam ser modificadas, mas que era cedo para uma decisão. O presidente Jair Bolsonaro também admitia a possibilidade de adiamento, mas insiste na realização das provas em 2020.

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Saída dos candidatos ao Enem 2019 de escola na Barra Funda, zona oeste de São Paulo - Rubens Cavallari/Folhapress

Sem previsão de retomada das aulas presenciais, ao contrário do que afirma o Inep, não é cedo para tomar uma decisão. Não se pode também acreditar que o adiamento das provas de novembro para dezembro e medidas de redução de alunos nas salas de realização da prova podem resolver o problema principal: o comprometimento do período de preparação para a prova de uma parcela enorme de estudantes que não têm acesso à estrutura necessária para continuar estudando.

Após dois meses com aulas suspensas devido às medidas de isolamento social, estudantes periféricos têm visto os desafios das desigualdades educacionais já existentes se multiplicarem, à medida que a transição forçada para o ensino remoto encontra um cenário de exclusão digital e falta de recursos adequados para a preparação para o ingresso na universidade.

Segundo levantamento realizado pela Casa Fluminense a partir da análise dos microdados do Enem 2018 coletados pelo formulário de inscrição da prova, em todo o país, 42% dos inscritos não têm acesso a um computador em casa. Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, esta proporção é de 32%. Deste grupo, 75% vêm de escolas públicas, 68% são negras e negros e 68% são mulheres. Na prática, isso significa que para uma parcela enorme de jovens que querem ingressar na universidade no próximo ano, a tela de um celular é o único recurso disponível para acompanhar a distância as atividades escolares e de preparação para a prova, parcela essa de maioria negra e de mulheres.

Para entender a gravidade deste quadro já desafiador, precisamos compreender a maneira como esses dados se expressam nas realidades locais das periferias do Rio, onde pré-vestibulares comunitários, sociais e populares desempenham historicamente um papel fundamental de democratização do acesso ao ensino superior para jovens negros de origem periférica.

No município do Rio, 27% dos inscritos no Enem não têm computador em casa, mas esta é a realidade de mais de 60% dos alunos do Santa Cruz Universitário, pré-vestibular que atende estudantes de Sepetiba, Santa Cruz e Paciência, na Zona Oeste do Rio. Esses bairros formam a AP 5.3, que possui a pior taxa de letalidade por Covid-19 entre todas as Áreas de Planejamento do Rio de Janeiro, com 30% de óbitos entre os casos confirmados da doença.

É possível observar que a sensação de morte iminente e o aumento descontrolado do contágio na zona oeste do Rio afetam diretamente os estudantes do Santa Cruz Universitário em ano de vestibular. Neste sentido, o número de estudantes sem acesso a computador representa apenas uma das diversas barreiras enfrentadas pelas alunas e alunos no atual cenário.

Os alunos, familiares e amigos próximos que já contraíram o vírus se tornam casos confirmados da doença e as perdas vão se somando no alto percentual de mortes. Como parte destas famílias, eles também sentem todas as dores de não enxergar apenas números e estatísticas distantes e subnotificadas. Por isso, falar das barreiras vividas por estes estudantes é também chamar atenção para os transtornos psicológicos desenvolvidos durante a pandemia, que ainda não estão sendo mensurados, mas são drásticos e os afetarão por longos períodos.

Em São Gonçalo, 32% dos estudantes inscritos no Enem 2018 não tinham computador. Já esse índice entre os alunos da turma de 2020 do Pré-Vestibular Comunitário Nós Por Nós, no Jardim Catarina, é de 72% (quase 3 em cada 4). Não ter computador ou acesso à internet de qualidade impossibilita o acompanhamento e a participação nas aulas virtuais, mas o ambiente com um todo interfere diretamente no processo de aprendizagem. Seja pela dificuldade de acesso à renda básica, pela falta de saneamento ou pelas frequentes intervenções policiais e os conflitos armados, os obstáculos são muitos. Toda esta vulnerabilidade local certamente abala a perspectiva e confiança dessa juventude, produzindo medo e incerteza.

Em Nova Iguaçu, o percentual municipal de inscritos sem computador era de 40% para a prova de 2018. Já dentre os alunos do PVNC Vila Operária, que atende estudantes dos bairros Vila Operária, Rancho Novo, Caioaba, Cruzeiro do Sul, Jardim Tropical e Miguel Couto, representam 68% os que não têm computador em casa neste ano. A maioria são estudantes da rede pública e muitas vezes dependem do sinal wi-fi de terceiros para se conectarem a plataformas antes desconhecidas, agora excludentes. Alguns também não dispõem de um local apropriado para estudar em casa, com famílias numerosas em casas de um ou poucos cômodos. Há, ainda, aqueles que trabalham e ajudam no sustento das suas famílias.

Para estudantes de origem popular, nunca foi fácil chegar à universidade. Mas, apesar dos desafios, o trabalho dos pré-vestibulares comunitários permite que todos os anos estudantes que não podem pagar por um cursinho particular conquistem a aprovação em universidades públicas e bolsas em universidades privadas. Da mesma forma, todos os anos ex-alunos e ex-alunas já matriculados na universidade retornam aos prés como professores e coordenadores voluntários para tornar possível que mais jovens periféricos acessem o ensino superior.

Por todas estas trajetórias e futuros possíveis, defender o adiamento do calendário do Enem 2020 até que a retomada das atividades nas escolas e pré-vestibulares seja possível é evitar que as desigualdades socioeducacionais que atravessam todas as etapas do processo de escolarização se aprofundem.

O acesso à universidade é um dos principais instrumentos para a melhoria da renda das famílias e para a mobilidade social. Neste sentido, cobramos o #AdiaEnem para garantir a democratização do ensino superior, tão arduamente defendida por leis como a 12.711/12, a Lei de Cotas. Diferentemente do que o Ministro da Educação supõe, o Exame Nacional do Ensino Médio é, sim, instrumento para corrigir injustiças sociais.


Marcyllene Maria é graduanda em ciência ambiental na Universidade Federal Fluminense (UFF). Fundadora da Organização Comunitária Nós por Nós - Por mais direitos e menos desigualdade social e coordenadora do pré-vestibular comunitário Nós por Nós (PVC NPN) no Jardim Catarina, em São Gonçalo (RJ).

Juliana Marinho é assistente social pela (PUC-Rio) e coordenadora do pré-vestibular Para Negros e Carentes, PVNC - Núcleo Vila Operária, em Nova Iguaçu (RJ).

Mariana Xavier é assistente social formada pela PUC-Rio e mestranda em saúde coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena o pré-vestibular social Santa Cruz Universitário no bairro de Santa Cruz, zona oeste do município do Rio.

Yasmin Monteiro é doutoranda em antropologia no PPGA-UFF e assessora de mobilização na Casa Fluminense, onde atua em projetos de apoio e fortalecimento de ativistas e organizações comunitárias das periferias da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

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