Mineiro radicado em Campina Grande (PB). Mestre em Escrita Criativa pela Universidad Nacional de Tres de Febrero (Argentina). Autor do livro de contos Arranhando Paredes (2014), traduzido para o espanhol. Venceu o Prêmio Todavia de Não Ficção.
Nasci em Pouso Alegre, no estado de Minas Gerais, em 1989. Saí ainda novo de lá e a lembrança que permanece comigo —dessa cidade a que voltei tantas vezes— é a do bairro periférico do São João, conhecido no passado como “Vendinha”. Lembro da descida íngreme e infinita na entrada do bairro, onde ficava a casa da minha avó Amélia. Eu e a molecada escorregávamos nessa vertigem com skates, bicicletas, tábuas, caixas e qualquer coisa em que os nossos corpos pudessem se encaixar e deslizar.
Nesses tempos puros, a nossa visão vê as coisas, mas não as compreende.
O bairro do São João significava uma espécie de paraíso, um local onde eu e meus pais íamos várias vezes durante o ano para visitar a família da minha mãe e, de tabela, celebrar o meu aniversário. Diversão sem fim. “Parabéns pro Bruninho!”, gritava a criançada do bairro. Depois do bolo, íamos ao quintal da minha avó e colocávamos a nossa energia pra fora. Desse quintal, lembro-me da árvore enorme que ali habitava. Árvore plantada pela minha mãe em que eu subi e brinquei até os meus vinte e poucos anos, quando tivemos que derrubá-la por estar doente e velha. A queda dessa árvore representou o momento em que eu comecei a compreender o São João de verdade.
Mudamo-nos para longe de Minas Gerais. O meu pai trabalhava em uma empresa grande e de renome e havia um status financeiro e mítico por trás da gente. Então quando chegávamos de viagem era como se a comitiva do presidente estivesse pousando no São João. Inclusive, alguns moleques me apelidaram de Bill Clinton. Por ser negro, nunca entendi o apelido —nunca fui pego em nenhum escândalo, relaxem—, mas hoje o compreendo. Éramos o lado chique dos Ribeiro.
“Cês vem de avião?”, perguntavam. “Viajar de avião é coisa de rico”, diziam. Pra mim nunca foi, mas quem sou eu pra dizer alguma coisa? Esses detalhes da vida real e de como as pessoas nos enxergam só ficaram claros quando a árvore do quintal partiu. Foi quando percebi que aquele paraíso, assim como todos os paraísos, tinha seus curtos-circuitos.
As fraturas do ar são as mais difíceis de percebermos, mas elas estavam lá no São João através da desigualdade social, da violência, das drogas, das sirenes, das batidas, da prostituição e da perda da infância. Quando me tornei adulto, as histórias do bairro ficaram mais próximas: amigo tal foi preso, irmão de fulano foi baleado, não sei quem é da igreja agora, outro tá no comando e sei lá quem é traficante. Claro que nem tudo é tristeza, mas no fundo sabemos que muita coisa ali poderia ser melhor se houvesse oportunidades. A vida cobra pesado e as tentações estão na porta. É uma bola de neve.
Essas verdades que fui entendendo com o tempo foram aprofundadas com o Alzheimer da minha avó. Eu chegava em Pouso Alegre e ela dizia: “Olha que príncipe lindo!”. Depois falava que as meninas do bairro estavam loucas pra me ver. Ela ainda me reconhecia, as meninas não. Com o tempo, ela foi deixando de me reconhecer também. Um dia, eu estava deitado no sofá da sala e ela ficou parada, me olhando, coçando a cabeça. Eu ri e perguntei: “o que foi, minha preta?”. Ela respondeu virando as costas. Não demorou muito pra minha avó nos deixar e virar as costas para sempre. A morte dela representou o fim do São João pra mim. Ainda visito os outros familiares, mas a casa dela está abandonada. Uma casa que foi se tornando mais uma entre as outras, com a diferença de que ela é um fantasma em ruínas. E o tal príncipe do São João foi percebendo que aquele bairro não era o seu playground: era a vida real fantasiada de algodão doce.
Os sinais estavam na minha frente: eu pensava ser diferente daquela molecada, quase todos negros, mas não era tão diferente assim. Passei por muitos casos de racismo na adolescência, mas abaixava a cabeça e fingia ser outra coisa. Dizia que só a minha mãe era negra e que o meu pai era branco. Eu me tornei um kamizake de mim mesmo e não sabia lidar com o que eu era. Só com o tempo, após a queda da infância e a morte da minha avó, que despertei para a última lição. Ok, eu não sou diferente deles, porém ser igual não quer dizer ser a mesma coisa. Aprendi isso na pele, em um belo dia lá no São João.
Eu devia ter uns 10 anos na época. Um moleque negro e pequeno me chamou para um canto. “Ei, Bruninho, cola aí.” Todo bobo, fui até ele. O menino se ajoelhou e disse que tinha algo legal pra me mostrar. Assim que eu me abaixei vi a fumaça atrás dele e não tive tempo de reagir; quando menos percebi, ele esfregou um cigarro aceso nas costas da minha mão direita.
“Ai, véio”, gritei.
“Isso é só pra tu se ligar, Bill Clinton”, ele disse e saiu correndo, rindo sem parar.
Na época, eu não sabia o que ele queria dizer com “se ligar”. Depois que a árvore caiu, eu também não soube. Após a morte da minha avó, soube mais ou menos. Hoje em dia, olho para a costa da minha mão direita e sussurro para o que restou das cinzas: “agora eu tô ligado.”
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