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O samba é a língua franca da população negra no Brasil, diz pesquisadora

Para Ana Flauzina, rodas de samba são espaços de convivência e resistência

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Maíra de Deus Brito

Jornalista e doutoranda em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília (UnB). Autora do livro "Não. Ele não está"

Nesta semana, a coluna da PerifaConnection traz uma entrevista com a professora e compositora Ana Flauzina. Idealizadora do projeto Samba Pra Rua, ela fala da importância do samba, da resistência negra e da força da cultura no combate ao racismo no Brasil.

"O samba cria ambientes de convivência entre diferentes gerações e classes sociais", afirma a pesquisadora. "É na ambiência das rodas de samba nos quintais de casa que as crianças convivem com seus velhos e seus vizinhos, forjando um sentido de coletividade natural."

Mulher negra com cabelos trançados, blusa branca e colar sorri para a câmera com um estandarte ao fundo
A professora e compositora Ana Flauzina - André Frutuôso

Flauzina descreve o gênero musical como uma espécie de língua franca da população negra no Brasil. "Se tudo se perdesse, e só restassem os discos de samba, seríamos capazes de recontar grande parte da história deste país," diz.

A sra. é uma intelectual conhecida por sua teorização sobre genocídio negro. Já dirigiu um documentário, escreveu uma obra literária e agora está coordenando o projeto Samba Pra Rua, em Salvador. Por que trafegar por tantas linguagens diferentes na luta contra o racismo?

Sem dúvida, isso tem a ver com minha inquietude pessoal. O como fazer as coisas sempre me interessou tanto quanto o que fazer delas. Por isso, eu acho que tendo a ser uma pessoa que não respeita as fronteiras das linguagens e me autorizo a circular por elas.

Mas isso também é reflexo da minha formação política. Desde que me aproximei do movimento negro, me vi diante de ações que requeriam abordagens distintas: palestras; marchas, campanhas publicitárias e outras intervenções com as quais me engajei.

A ação política demanda criatividade e pluralidade de linguagens, e eu fui me permitindo usar toda e qualquer arma ao meu alcance para enfrentar o racismo.

A sra. surpreendeu muita gente quando começou um projeto envolvendo samba em Salvador. Qual é a sua relação com o samba, e como nasceu o projeto Samba pra Rua?

Eu não sei se me lembro da minha vida sem samba. O samba tem o cheiro do feijão da minha mãe cozinhando aos sábados. Ele é a trilha sonora das minhas melhores lembranças. Eu componho há alguns anos e, desde que eu cheguei em Salvador, esse processo se intensificou.

Há um ano, minha intuição me convocou a fazer uma roda de samba em homenagem ao dono da rua e ao senhor da guerra, simbolizados por Exu e Ogum, orixás no candomblé Ketu. Na minha cabeça, era só isso.

Um ano depois, essa oferenda se tornou um projeto que circula pelas ruas de Salvador, contando com participações de grandes nomes do cenário musical, como Nelson Rufino, Gal do Beco e Aloisio Menezes.

Como forma de marcar o aniversário da iniciativa, será feita uma roda de samba nesta terça-feira (30), às 19h30, na Casa Rosa, com a presença dos grupos Sambaiana, Liga do Samba Junino e Ilê Aiyê. E, claro, o projeto vem politizando questões fundamentais durante essa caminhada.

Idoso negro com microfone na mão no meio de uma roda de samba
Nelson Rufino na edição de dezembro de 2022 do Samba pra Rua - Fafá

Que questões são essas?

A primeira é a reivindicação da rua como um espaço sagrado, público, que está cada vez mais sendo saqueado das nossas mãos. As políticas genocidas em curso criminalizam a rua, a noite, as festas, e nós temos que lutar para ter o direito de ocupar esse espaço com liberdade.

Se olhamos a realidade das juventudes de Salvador, de um lado vemos jovens brancos de classe média podendo se divertir em segurança em locais fechados. Por outro lado, um verdadeiro toque de recolher é imposto para os jovens negros, que não podem circular livremente pela cidade devido ao risco da brutalização e da morte.

Por isso, é importante reivindicarmos a rua como um espaço onde nossos corpos possam circular livremente —e também se divertir. E, claro, além da rua, o próprio samba é uma causa que temos abraçado nesse processo.

A sra. vê o samba como uma causa? Por quê?

O samba é parte essencial do que nos forjou como comunidade. Um dos efeitos mais perversos do racismo é criar cisões comunitárias, obstruindo a possibilidade de nos encontrarmos e nos comunicarmos uns com os outros.

Historicamente, o samba é uma língua franca e um lugar de encontro das pessoas negras. É uma língua franca na medida em que ele é uma espécie de autobiografia da população negra no Brasil. Se tudo se perdesse, e só restassem os discos de samba, seríamos capazes de recontar grande parte da história deste país.

No samba, cabem nossas lutas, nossas dores e nossos afetos. O samba cria ambientes de convivência entre diferentes gerações e classes sociais. É na ambiência das rodas de samba nos quintais de casa que as crianças convivem com seus velhos e seus vizinhos, forjando um sentido de coletividade natural.

Cada vez mais, temos falado em dialetos culturais que não se comunicam, e temos deixado de nutrir espaços para encontrar com aqueles que são diferentes de nós. Isso faz com que nossas comunidades sejam incapazes de se defender.

Quando a sra. fala sobre as narrativas do samba, me vem à mente a questão da composição e da importância de mulheres negras ocuparem esse lugar.

Compor é assinar uma perspectiva que ecoa no mundo, é ter voz no sentido mais pleno da acepção dessa palavra. Nomes como Dona Ivone Lara, Leci Brandão e tantas outras são referências por disputarem o espaço das narrativas em um universo hegemonizado por homens.

No meio de uma indústria fonográfica perversa, que sustenta uma cultura musical forjada na degradação e humilhação das mulheres, é vital que compositoras negras engajadas possam ter suas músicas gravadas e distribuídas para o grande público.


Quais são os planos para o Samba pra Rua daqui pra frente?

Do ponto de vista musical, a ideia é gravar um disco que registre a identidade do grupo. O movimento de preservação do samba passa também por produzir novas músicas que ampliem o repertório das nossas narrativas.

Além disso, gostaria de dar mais consequência às ações de impacto social do projeto de uma forma menos convencional. Por exemplo, nós apoiamos a Associação das Profissionais do Sexo da Bahia (Aprosba) nas ações do samba.

Também planejamos intervenções na área da saúde. O Samba pra Rua pode ajudar a promover a educação sexual, com a distribuição de preservativos, o oferecimento de exames e a realização de campanhas de combate à violência sexual.

Grupo de musicistas posa para a câmera
Banda Samba pra Rua.. Da esq. para a dir., Andreia Azevedo, Deyse Ramos, Geovana Franco, Ruan de Souza, Aisha Araújo, Mario Pam e Sergio Pam - Fafá

Políticas públicas só alcançarão a população negra se estiverem disponíveis nos espaços frequentados por essas pessoas. O Samba pra Rua tem isso como horizonte.

Como a sra. encara o cenário político atual?

Nessa caminhada com o Samba pra Rua, tenho entendido cada vez mais a encruzilhada como um lugar de tomada de decisão, e não como espaço para dúvidas.

O cenário político atual nos convoca a nos posicionar. De um lado, temos de estar atentos ao avanço do bolsonarismo, que definitivamente não se desmobilizou após a derrota apertada nas urnas. De outro lado, temos que enfrentar com vigor as ações de cunho racista que seguem em curso desde a posse de Lula.

Não podemos ser coniventes com um governo que endossa pautas como o novo ensino médio, que é um tiro letal no futuro da juventude negra brasileira. Não dá mais para deixarmos que cada aparição do presidente seja convertida em um palanque emocionado de uma campanha que parece não ter fim. É hora de disputarmos nossas pautas com veemência.


RAIO-X | ANA FLAUZINA

Militante do movimento negro, é professora da UFBA (Universidade Federal da Bahia). É autora dos livros "Corpo Negro Caído no Chão" (2006) e "Utopias de Nós Desenhadas a Sós" (2019). Dirigiu o documentário "Além do Espelho" (2017). É idealizadora e coordenadora do projeto Samba pra Rua, em Salvador.

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