Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Eliane Trindade
Descrição de chapéu Todas maternidade

'É como fantasma. Ao falar, perde-se o medo', diz mãe sobre luto por recém-nascido

Como a terapeuta Marília Hellmeister usou a escrita para lidar com perda do filho que nasceu em um 12 de Outubro, Dia das Crianças

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São Paulo

Marília Hellmeister, 47, pariu um livro difícil e necessário. A obra se chama "Nó."

São 99 páginas gestadas ao longo dos últimos anos, em um diário no qual processava o luto pela perda de Lourenço, o terceiro filho nascido em 12 de outubro de 2012.

"Dia das Crianças. Que sinal maravilhoso para se confiar na força da natureza! Assim que amanheceu, comecei a sentir as contrações", relata ela, sobre um parto que teria desfecho diferente dos dois primeiros.

O sinal de alerta veio com a enfermeira intrigada ao notar no exame uma grande quantidade de mecônio. "Em linguagem popular, o bebê havia feito cocô dentro da barriga", explica.

Mulher loura de cabelos encaracolados sorri em cenário colorido e florido
A terapeuta Marília Hellmeister escreveu um diário que virou livro sobre luto pela perda de um filho recém-nascido pra - Arquivo Pessoal

A equipe preparou uma cesariana de emergência. O corte abrupto entre mãe e filho foi o primeiro de muitos traumas que se seguiriam.

"Enquanto as sete camadas da cesárea estavam sendo costuradas, descobriu-se um nó no cordão umbilical", escreveu a artista plástica e terapeuta de família, que busca um editor para publicar a obra.

"Naquele instante, fotografei o nó. Durante meu registro, vivi o nó, fui o nó. Eu toda era um grande nó."

O recém-nascido precisou ser entubado. Marília visitou o filho na UTI. "Pude tocar meu bebê, fazer carinho nele, conversar com ele. Mas pegar, não."

Às 2h da madrugada, o telefone toca no quarto. O pai, o psicólogo João Paiva, volta da UTI com a notícia: "Acho que nosso filho morreu".

A família descobria em meio "à pior dor do mundo" que a morte de uma recém-nascido era "o tabu", entre tantos que rondam a finitude da vida.

Era preciso lidar com o despreparo do hospital, da equipe médica, da escola, de pessoas próximas e desconhecidas. Enfim, da sociedade como um todo.

A seguir, o relato de uma mãe que mergulhou em um processo de escrita curativa.

"Eu comecei a escrever uma espécie de diário numa tentativa desesperada de dar vazão, encontrar algum sentido. Nada consolava o casal.

A médica da UTI manteve nosso filho aquecido até o momento em que fomos nos despedir dele. Eu não imaginava que existisse esse tipo de paliativo mórbido, essa estranha delicadeza. Peguei meu filho no colo. Não há palavras para descrever o que senti.

Mesmo estando num dos melhores hospitais do país, não encontrei uma pessoa sequer realmente preparada para nos ajudar a lidar com a nossa perda.

Muitos cuidaram do meu corte, do meu leite. Mas eu tinha um enorme buraco dentro de mim. Isso ninguém parecia notar.

Ficou marcado em minha memória que me trataram como uma mera paciente e desprezaram a mãe que acabara de perder o filho.

Fiquei em um quarto na maternidade, enquanto as outras famílias festejavam o nascimento de suas crianças.

Uma amiga me contou que ao visitar uma outra mãe que também perdera um bebê ela teve que pedir para a enfermagem retirar o bercinho vazio do quarto.

A falta de preparo foi também da equipe médica, a mesma que me acompanhara no nascimento dos meus dois primeiros filhos.

Uma equipe que cuida lindamente do nascimento, dos significados da vida que ali se dá, não poderia trabalhar também os efeitos naturais da morte? Apenas silenciaram.

Sobreviver a um corpo no pós-parto sem o meu neném. Isso era tudo a que me propunha. E me parecia impossível.

Meu corpo era apenas um grito pelo filho perdido. As pílulas que tomei para secar o leite não funcionaram. Eu vazava, entre urros de dor, um estranho pranto branco. Vazava leite e vazavam lágrimas."

Perguntaram se as crianças deveriam ir ao crematório, respondi que sim. João e eu tínhamos certeza de que elas deveriam ir e se despedir.

A cena mais triste que alguém pode imaginar. Eu já havia me despedido do meu filho na UTI. Nada mais fazia sentido.

Comecei a escrever porque é um luto solitário. Eu precisava dar conta pelos meus filhos que estão vivos. Eu tinha meu marido, minha família. Essa retomada da vida é lenta.

Quis que essa escrita virasse uma monografia do meu trabalho de formação em terapia familiar. Então estava muito teórico, pois comecei a estudar muito de luto.

Participei de congresso e me apresentei como mãe. E aí comecei a tirar tudo que tinha de teoria.

Cada vez que eu mexia nos meus escritos, eu chorava muito. O livro foi um novo parto importantíssimo.

Eu pensava: quem vai querer ler isso? As pessoas diziam: ‘Você é muito corajosa’. Não é coragem, é necessidade.

É um luto muito solitário mesmo. E não tinha conforto.

Quando levei meus filhos ao dentista, ele me chamou no canto e contou que no Chile já existia um protocolo.

Ele tem uma mecha do cabelinho, uma foto, montaram uma caixinha no hospital e deram para ele como recordação do filho morto.

Eu liguei para a escola da minha filha e pedi para que avisassem os coleguinhas. Quando ela voltou, os amiguinhos perguntaram como estava o irmão. Ou seja, a escola não conseguiu nem contar.

É como fantasma. Quando se põe luz, perde-se o medo. Iluminar esse tema vai acalentar o coração das pessoas. Encontrei algumas mães que também tinham perdido nenês. Uma falou: ‘Coloquei em uma gavetinha, fechei’.

A confirmação da perda perante os outros é um dos ritos mais delicados no processo do luto. Infelizmente, a sociedade promove o contrário. 'Não toque no assunto da perda, vamos poupá-la de sofrer mais'.

Não foram poucas as vezes que escutei isso e vivenciei ali a falta de espaço e de escuta para a dor.

Quando fiquei grávida da Helena, hoje com três anos, foi uma gestação difícil no meio da pandemia. Fiz todos os exames possíveis. Sempre tensa. Quando ela nasceu, foi um alívio.

Sempre me perguntam quantos filhos eu tenho. Na minha cabeça, são quatro filhos. Um está no céu e três, aqui na terra. Sofia hoje está com 20 anos e Vicente, com 15.

É difícil falar sobre o Lourenço até hoje. Ele está vivo em mim. A gente ficou com as cinzas dele por muito tempo, guardadas perto da foto dele. Meu marido não conseguia se desfazer.

Quando compramos nossa casa, plantamos a árvore do Lourenço. Das cinzas nasceu uma árvore que tem sempre flores. São muito importantes esses rituais.

Lógico, se fala cada vez menos do Lourenço. Não deu tempo de tirar foto dele vivo. Só tenho uma dele entubado, que está em um cantinho em casa.

Meu confuso diário foi um dos meus companheiros. Talvez o mais íntimo deles, o que percorreu comigo o caminho que se iniciou no vazio da perda

Marília Hellmeister

terapeuta e artista plástica

Eu pedi que a pessoa que tinha pintado o quarto dele fosse arrancar o papel de parede e pintar de azul. Minha mãe e a minha funcionária desmontaram tudo.

Antes, eu entrei no quarto do meu filho sozinha, sentei na cadeira de amamentação, chorei muito e me despedi olhando cada detalhe.

Esse quarto ficou com a porta fechada por meses. Até que Vicente, quando tinha quase 5 anos, começou a abrir, usar para brincar. Virou uma sala de TV e foi sendo habitado novamente.

A mala com as roupas do Lourenço ficou guardada na casa da minha sogra uns seis anos, até que uma pessoa próxima ia ter um menino e eu doei tudo.

Como mãe, tive de dar conta do medo que atravessou minhas crianças: o fantasma da morte. Foi quando percebi que eu mesma o vivi quando pequena, também eu era uma criança a ser notada e a ser curada. Perdi meu pai aos 11 anos.

Dia da Criança não existe mais para mim. Infelizmente nem para os meus filhos também.

Eu fecho o livro com uma reflexão. Todas as palavras ali presentes, durante longos anos, serviram apenas a mim. Com elas, naveguei por muito tempo e tantas vezes naufraguei dentro de mim mesma.

Meu confuso diário foi um dos meus companheiros. Talvez o mais íntimo deles, o que percorreu comigo o caminho que se iniciou no vazio da perda e foi até a reconstrução de um lugar no mundo.

Passamos e paramos em lugares dolorosos, terra de pais destruídos tentando cuidar de seus filhos, terra de um casal lutando para que a dor não os distanciasse e, principalmente, terra de uma família devastada querendo a todo custo se recompor.

Quem sabe estas palavras não sejam uma despedida do sofrimento? Uma despedida do meu luto, uma despedida do barco que navego há tanto tempo? Quem sabe não sirvam para ajudar alguém a atravessar o mesmo oceano?"

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