Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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Eliane Trindade
Descrição de chapéu Tragédia em Brumadinho

Após cinco anos, Brumadinho lida com dependência da 'bolsa tragédia' e carestia

Economia do município tem pujança e efeitos colaterais do 'dinheiro do sangue' com R$ 2,5 bi em indenizações, programa de transferência de renda e obras de reparação da Vale

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Na entrada de Brumadinho, memorial com fotos e cartazes lembra as 270 pessoas, duas delas grávidas, que perderam a vida no rompimento da barragem do Córrego do Feijão, numa mina da Vale na região Marlene Bergamo/Folhapress

Brumadinho (MG)

Família não consegue pagar o aluguel de R$ 3.000 de uma casa com três quartos no mercado imobiliário superaquecido de Brumadinho (MG). Decide se mudar para o município vizinho, onde imóvel similar custa R$ 1.500 por mês.

Dona de casa denuncia ao Procon preços majorados de produtos de limpeza, carne e fraldas geriátricas nos mercadinhos locais.

Falta mão de obra para alguns serviços, enquanto novos postos de trabalho são ocupados por operários de fora atraídos pelas obras de reparação.

Aluno de 12 anos chega à escola com celular recém-lançado. Irmão acaba de fazer 18 e quer comprar um carro. Cada um recebeu R$ 100 mil de indenização, mais benefício mensal de meio salário mínimo, como órfãos da tragédia causada pelo rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em 25 de janeiro de 2019.

À sombra da tragédia, das obras de reparação e das indenizações, Brumadinho lida com inchaço populacional, especulação imobiliária e aumento do custo de vida, em meio ao luto coletivo - Marlene Bergamo/Folhapress

As situações descritas acima são parte do dia a dia da cidade que ganhou as manchetes há quase cinco anos, após desastre em uma mina da Vale que tragou a vida de 270 pessoas, duas delas grávidas.

Um mar de lama de 9,7 milhões metros cúbicos de rejeitos vazados se espalhou pela bacia do rio Paraopeba, afetando 26 municípios.

Os impactos social, ambiental e econômico da tragédia são visíveis no adoecimento físico e psicológico de moradores, no inchaço populacional e na elevação do custo de vida em Brumadinho.

Estima-se que o município de 38.915 habitantes abrigue de fato quase 50 mil —ante os 29 mil contabilizados antes do rompimento da barragem—, levando-se em conta uma população flutuante de cerca de 10 mil funcionários contratados para as obras de reparação.

O comércio de bens de consumo, como celulares e carros, assim como o boom imobiliário traduzem uma pujança econômica irrigada por R$ 2,5 bilhões em indenizações recebidas por familiares de vítimas e atingidos pelo desastre.

Segundo o relatório Dia a Dia do Acordo Geral de Reparação, até novembro de 2023 havia sido concluído 64% do compromisso de R$ 37,6 bilhões firmado em 2021 entre a Vale, o Governo de Minas Gerais, o Ministério Público Federal e o Ministério Público e a Defensoria Pública estadual.

"A vida ficou bem mais cara. É uma coisa que dói, porque acham que quem recebeu indenização ficou rico, mas dinheiro não vai pagar a saudade e a nossa saúde depois dessa tragédia-crime."

O desabafo é de Alexandra Andrade, ex-presidente e atual secretária da Avabrum (Associação dos Familiares da Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem em Brumadinho).

Alexandra Andrade, da Avabrum (Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem do Feijão), perdeu irmão e primo na 'tragédia-crime' - Marlene Bergamo/Folhapress

A funcionária pública, que perdeu o irmão, Sandro, 42, e o primo, Marlon, 35, acompanha a luta por justiça e os impactos emocionais e econômicos de viúvas e órfãos da Vale, como são chamados, que lidam no cotidiano com uma inflação maldita. "Até se evita falar que é familiar de vítima", diz Alexandra. "Logo vão querer nos explorar."

A divulgação de quantias vultosas pagas aos parentes dos 270 mortos alimenta a ganância, ela diz.

"É divulgado como se fosse um ganho, uma coisa boa, mas é um dinheiro de sangue", afirma a representante da Avabrum sobre preços majorados de serviços ou em negociações envolvendo indenizados.

Ao montante das indenizações somam-se os R$ 50 milhões mensais do Programa de Transferência de Renda (PTR), conhecido como "bolsa tragédia" ou "bolsa Vale", pago ao conjunto da população.

É uma espécie de Bolsa Família, bancada por um fundo de R$ 4,4 bilhões depositados pela Vale dentro do acordo de compensação.

"É o maior programa de transferência de renda privado no mundo. Ele atinge 130 mil pessoas do Vale do Paraopeba, 50 mil delas em Brumadinho", afirma André Andrade, gerente-executivo da FGV Projetos, gestora do fundo.

"A população inteira recebe um benefício mensal", explica o responsável pelo PTR. É pago um salário mínimo por mês para adultos, meio para adolescentes a partir de 12 anos, e um quarto do mínimo para crianças. Valores são reduzidos à metade fora da chamada zona quente, a área mais afetada.

A "bolsa tragédia" tem prazo. "O fundo existe para aumentar a duração [do pagamento], mas é finito. Saca-se todo mês cerca de R$ 100 milhões. Já foram pagas 26 parcelas do PTR", contabilizou o economista da FGV em novembro de 2023, quando havia R$ 3,3 bilhões em caixa.

Em Brumadinho, o valor de R$ 600 milhões injetado pelo programa por ano é maior que o orçamento de R$ 500 milhões da cidade previsto para 2024, incluindo a folha de pagamento municipal.

"Isso é um sinal de alerta", diz Andrade. "Os valores pagos de PTR equivalem a 22% do PIB de Brumadinho."

A expectativa é que o auxílio dure até o final de 2025. "Estamos fazendo estudos de impacto e analisando propostas de como fazer esse término em uma cauda longa", diz o gestor.

A ideia é fazer uma redução progressiva para que os beneficiários possam se adaptar. "Não existe definição de quando começaria essa redução. Temos uma série de cenários que dão variações do programa por mais dois ou três anos."

Para Frank Versiani, fundador do Movimento Justiça por Brumadinho, a cidade não conseguiria viver mais sem o benefício. "Isso é preocupante. O PTR significa não passar necessidade. As pessoas estão doentes, vivem desse salário", avalia. "Com o valor recebido, muitos não precisam trabalhar. Aí o pessoal fala que deixou a população mal acostumada", critica.

Fundador do Movimento Justiça por Brumadinho, Frank Versiani, 42, relata preocupação com o fim do PTR (Programa de Transferência de Renda) - Marlene Bergamo/Folhapress

Funcionário da Vale até 2017, Silas Fialho, 37, conta que sobrevive com menos de R$ 4.000 do PTR —dois salários mínimos pagos a ele e a mulher, mais meio salário que cabe ao filho de 15 anos e um quarto devido ao caçula, de 6 . "Operário da mineração não tem condição de trabalhar tomando remédio controlado", diz ele, indagando o que será da população quando acabar o benefício.

Até o rompimento da barragem, quando perdeu um primo e uma tia, o morador do Parque da Cachoeira ganhava salário de R$ 3.000 e tinha ganho extra de R$ 4.000 do arrendamento de um sítio, mais R$ 6.000 que tirava de uma quitanda.

"Perdi o emprego, o comércio fechou, e o sítio ninguém quer alugar nem produz nada por conta da água contaminada."

Abalos que se somam ao fato de não ter mais vizinhos. Silas diz estar rodeado de imóveis vazios comprados pela Vale ou com placas de vende-se.

Enquanto na sede do município houve inchaço populacional, os distritos mais afetados foram se esvaziando.

No centro de Brumadinho, o preço dos imóveis foi às alturas, com um quarto e sala alugado por R$ 1.500, enquanto um apartamento médio é vendido por R$ 300 mil, valores que eram a metade antes da tragédia.

Há carência de mão de obra para funções que pagam até um salário mínimo, demanda suprida por cidades do entorno.

A dependência da Vale tem gerado desigualdades. "Acho injusto uma parte receber um salário e outra, meio. Isso trouxe revolta", diz Versiani, que buscou ser indenizado por lucros cessantes após a falência de uma construtora que manteve por 15 anos. "Fechei a empresa e não consegui mais retomar a vida."

Ele cobra a liberação de recursos do Anexo 1 do Acordo de Reparação, que prevê linhas de crédito para recomeçar. "A população está numa pior. Esperamos capital de giro para os atingidos há mais de dois anos."

O Anexo 1 é apontado como alternativa ao PTR para fomento à agricultura e ao turismo. Ainda está em fase de elaboração o projeto do distrito industrial de Brumadinho, esperança de diminuir a dependência dos royalties da mineração e da reparação da Vale.

Norberto Pinheiro, secretário municipal de Planejamento, afirma que, até a tragédia, a principal receita era a Cefem (Contribuição Financeira sobre Extração Mineral), que vem caindo ano a ano, enquanto a arrecadação de ISS (Imposto sobre Serviços) cresce.

"Um número grande de empresas veio trabalhar nas inúmeras obras de infraestrutura e de compensação ambiental, trazendo enorme contingente de trabalhadores temporários. Não é situação que perdure. É conjuntural", avalia o secretário.

Pelo acordo com a Vale, R$ 1,5 bilhão será destinado para obras estruturantes em Brumadinho. "O município se sentiu prejudicado, considerando que 90% da tragédia ocorreu aqui", critica Pinheiro, diante da distribuição dos recursos definida entre Vale e governo do estado.

"A cidade precisa sair da dependência do minério", avalia Alexandra, da Avrabrum. "Essa vocação econômica da reconstrução é temporária. A cidade está lotada, com trânsito caótico e mais violência", diz.

Apesar das melhorias na infraestrutura, ela cita efeitos colaterais continuados da tragédia. "A cada hora se descobre um problema diferente. Quem dera reparar fosse [algo a se fazer] em menos de um minuto como foi matar."

A tragédia se desdobra também no aumento do uso de remédios para tratamento de depressão e ansiedade e em casos de dependência de álcool e drogas.

"É uma cidade doente em vários sentidos. É doente economicamente, pela dependência, e mentalmente, porque o luto se espalha de forma grave", diz Andrade, que se mudou para a cidade para gerir in loco a distribuição do PTR. "Brumadinho hoje está da cor do rio, marrom. Você não vê alegria, é muito triste."

OUTRO LADO

Em nota, a Vale afirma que assumiu um compromisso com a reparação que vai além do pagamento das indenizações e do cumprimento dos acordos judiciais.

No âmbito de atendimento às famílias indenizadas, diz ter disponibilizado o Programa de Assistência Integral ao Atingido (PAIA), com o objetivo de oferecer suporte para a retomada da vida, como consultorias em compra assistida de imóveis, educação financeira, retomada produtiva urbana e rural e apoio psicossocial.

Todas as obras executadas e em execução foram definidas a partir de demandas das comunidades, governos e instituições locais, acrescenta a nota.

"A Vale tem total consciência das graves consequências que o rompimento da barragem causou", afirma. "É um trabalho diário, realizado a partir de escutas ativas e respeitosas com as comunidades e em cumprimento de todos os compromissos assumidos com as instituições de justiça, governos e, principalmente, com a população."

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