Eliane Trindade

Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

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'Nessa era de conflitos, o possível é o novo sim', diz William Ury

Veterano em negociação, o antropólogo americano lança novo livro em que mostra como é possível transformar conflitos tidos como insolúveis

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São Paulo

Em uma viagem pela Amazônia brasileira, o antropólogo William Ury aprendeu uma lição ao ouvir uma canção que dizia: "Não dê conselhos a quem não quer ouvir". Ele aplica a máxima em sua vasta experiência como negociador de conflitos ao redor do mundo.

Cofundador do Programa de Negociação de Harvard, Ury viu com os próprios olhos acordos históricos, como o firmado entre o primeiro ministro de Israel, Menachem Begin, e o presidente do Egito, Anwar Sadat, em 1978 em Camp David, sob as bênçãos de Jimmy Carter.

Por seis anos, foi conselheiro do então presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, durante as negociações para pôr um fim aos 50 anos de conflito com as Farc.

Um homem sorridente está sentado em um sofá. Ele usa uma camisa de gola polo de cor vinho e está apoiado em um travesseiro bege. O fundo é um ambiente interno com um sofá claro e uma planta visível ao lado.
O antrópolo William Ury, professor de Harvard e veterano negociador de conflitos, está lançando o livro "Sim, É Possível" (ed. Sextante) - Carl Studna/divulgação

Ury foi casado com uma brasileira, conta que os filhos falam português e que o Brasil é seu segundo país. "Meu coração é meio brasileiro, amo a cultura, as pessoas."

Tornou-se amigo de Abílio Diniz (1936-2024), quando negociou o acordo que levou ao fim à disputa com o Casino.

Ali colocou em prática ensinamentos do seu novo livro "Sim, É Possível – Sobreviver e Prosperar em uma Era de Conflitos" (ed. Sextante).

Em entrevista à Folha, ele fala do conceito de "possibilista", de acreditar no potencial de chegar ao sim em conflitos que parecem insolúveis, usando criatividade, empatia e a capacidade de ouvir.

O que lhe inspirou a escrever este livro? Passei os últimos 50 anos atuando em conflitos ao redor do mundo. Frequentemente, me perguntam se sou otimista ou pessimista. Gosto de dizer que sou um "possibilista". Acredito no nosso potencial como seres humanos para chegarmos ao sim. Conflitos não desaparecerão, mas podemos transformar aqueles que parecem insolúveis, ao mudar a forma destrutiva com que lidamos em batalhas familiares viscerais, em processos judiciais e guerras.

O mundo está ficando mais e mais polarizado. No Estados Unidos, no Brasil e na Europa. Vivemos numa época de policrises e aceleradas mudanças, como inteligência artificial e aquecimento global. É como estar no mar com ondas turbulentas. Precisamos aprender a surfar para navegar nestes tempos difíceis, lidando com as diferenças com mais diálogo e escuta.

Como atua um ‘possibilista’? As três características de um possibilista são curiosidade, criatividade e colaboração. É enfrentar a animosidade com curiosidade. Ser capaz de ir para o camarote, como chamo esse lugar de onde se pode ver o todo e entender as perspectivas. Devemos usar na negociação de conflitos a mesma capacidade criativa natural que demonstramos nas artes, na música. E sermos colaborativos, atacando o problema em conjunto, em vez de atacarmos uns aos outros.

O maior obstáculo em uma negociação não é a pessoa difícil do outro lado da mesa, seja um membro da família, um cliente, um partido político ou um país. Para transformar um conflito, precisamos trabalhar três aspectos: o eu, o você e o nós. A tendência natural é reagir quando entramos em situações conflituosas. É agir sem pensar. Com raiva, você certamente fará o melhor discurso do qual irá se arrepender.

Então, a base de uma negociação bem-sucedida é a capacidade de dar um passo atrás e perguntar o que é mais importante. Para pôr fim em um conflito é preciso chegar ao sim consigo mesmo antes de chegar lá com os outros.

A paz mundial é possível? É para isso que tenho dedicado toda a minha vida. Perguntei aos anciãos do povo mais pacífico do planeta, que vive na Malásia, por que eles não entram em guerra. Eles disseram que não se pode controlar tsunamis, terremotos. A guerra, no entanto, é feita por seres humanos, então pode ser interrompida por nós.

Essa é a melhor resposta para sua pergunta. É difícil, mas temos muitos exemplos. Quando comecei, havia a Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética. Todos pensavam que o Muro de Berlim sempre estaria lá. Fui e voltei entre Washington e Moscou muitas vezes. Estava na África do Sul na época do apartheid. Estava na Irlanda do Norte, com católicos e protestantes se matando por tantas décadas. Vi todos esses conflitos se transformando.

Até o do Oriente Médio, que é visto como insolúvel. Quando era estudante de pós-graduação, tive uma pequena participação em Camp David, em de 1978, quando o presidente Jimmy Carter conseguiu um acordo entre Israel e Egito. Com curiosidade, criatividade e colaboração, ele construiu uma ponte e atuou como terceiro lado entre os dois adversários que travaram quatro guerras nos 25 anos anteriores. O mundo esperava uma quinta, mas todos os métodos de negociação que proponho nos meus livros foram usados e o impossível se tornou possível.

Quem pode fazer esse papel no conflito atual Israel-Hamas? É a comunidade mais ampla que inclui outros países do Oriente Médio, como Egito e Jordânia, e do Golfo, como Arábia Saudita, além de Turquia, Europa e Estados Unidos. E ainda israelenses e palestinos que defendem o todo. Pense nesta terceira parte como um sistema imunológico social para prevenir o vírus da violência.

Existe uma vacina contra intolerância religiosa e polarização? É ser empático, a qualidade chave numa negociação, quando se tenta persuadir e influenciar o outro. A maneira mais simples de fazer isso é ouvir na perspectiva da outra parte. Isso comunica respeito, a concessão mais barata a se fazer. Não custa nada a você e significa tudo para a outra parte.

Como foi atuar na Colômbia e Venezuela? Em 2011, fui convidado pelo presidente Juan Manuel Santos para ir à Colômbia. Ele queria tentar acabar com a guerra civil de 50 anos com as Farc. Trabalhei por seis anos como conselheiro dele. Gradualmente, foram feitos contatos com as Farc e negociações secretas em Havana. O acordo foi alcançado com os guerrilheiros entregando as armas, algo que ninguém esperava ser possível.

Como avalia as tensões na Venezuela? O Brasil e outros países vizinhos têm um papel importante a desempenhar para acalmar as tensões e acabar com a violência, criando um processo legítimo e mutuamente aceito, após eleições cujo resultado é intensamente contestado. Uma possibilidade que vale a pena estudar é que o Brasil e o Vaticano medeiem conjuntamente tais negociações. Não há país melhor posicionado para liderar esse caminho do que o Brasil.

Os melhores terceiros lados são seus amigos. O presidente Lula era amigo de Chávez. Há uma oportunidade agora para ele desempenhar um papel histórico, ajudando a Venezuela a fazer uma transição na qual todos os lados possam se beneficiar e não apenas o vencedor.

O senhor tem atuado nas negociações relacionadas à guerra na Ucrânia? Nos bastidores. Fui à Ucrânia duas vezes, quando havia muitas oportunidades para evitar a guerra. Eu estava ao telefone com um ucraniano proeminente no dia em que o conflito estourou, quando é difícil parar. Nos reunimos com um russo, um ucraniano, um chinês, um americano, um britânico e um francês. Basicamente o Conselho de Segurança da ONU mais a Ucrânia para elaborar ideias de como apoiar as negociações.

Nos primeiros meses, houve uma chance de se colocar um fim à guerra. Fui solicitado pela Casa Branca a escrever um memorando. Discutiu-se em Camp David uma ideia simples, a partir da escrita dos discursos de vitória de Putin e de Zelensky, no qual ambos anunciariam o fim da guerra. E o melhor dia para fazer isso seria 15 de maio, o chamado Dia da Vitória, por celebrar a vitória sobre os Nazistas na Segunda Guerra Mundial.

Não se chegou a um acordo, mas vejo uma nova oportunidade nos próximos meses com Biden direcionando a atenção americana para trabalhar com russos, ucranianos, europeus e chineses para descobrir uma maneira de parar essa guerra terrível.

Quais foram os desafios do caso Abílio Diniz/Casino? Recebi um email de Ana Maria Diniz dizendo que o pai estava envolvido nesse conflito de anos que consumia a família. Era início de 2013. Conheci também a mulher dele, Geyze, em um dos meus seminários. As duas funcionaram como um terceiro lado naquele conflito. Mulheres costumam ser pacificadoras, enquanto homens são mais propensos a brigar.

Perguntei o que Abílio almejava. Como homem de negócios, ele mencionou uma quantia de dinheiro, ações, eliminação da cláusula de não-concorrência. Isso é que dizemos na negociação. Perguntei novamente o que ele realmente queria. Depois de um longo tempo, disse: ‘Liberdade’. Ele tinha sido sequestrado. Muitas vezes, nos sentimos como um prisioneiro em um conflito.

Como foi negociar com o outro lado? Uns dois meses depois, me encontrei em Paris com o banqueiro David Rothschild, mentor da outra parte, Jean-Charles [Naouri, presidente do conselho do grupo Casino]. Comecei a conversa dizendo que a vida é muito curta para estas batalhas. Ele ficou surpreso. Os dois lados estavam gastando milhões e milhões com advogados, firmas de relações públicas. O conflito afetava as famílias, os funcionários do Pão de Açúcar e tensionava as relações entre França e Brasil.

Propus ajudar nossos amigos a sair daquela bagunça. Concordamos que os dois queriam sua liberdade para seguir em frente e dignidade numa situação pública. Nenhum deles podia se dar ao luxo de ser visto como perdedor.

Rothschild me convidou para ir ao seu escritório no dia seguinte. Em um papel, esboçamos uma fórmula simples em 45 minutos.

Voei para o Brasil, me encontrei com Abílio na terça. Na sexta, ele e Jean-Charles estavam no escritório de advocacia em São Paulo assinando um acordo que encerrava uma disputa de sete anos. Fizeram um comunicado conjunto desejando sucesso um ao outro.

Perguntei ao Abílio como se sentia: ‘Consegui tudo que queria, mas o mais importante foi ter recuperado minha vida’. O seu maior adversário não era o outro lado. Era ele mesmo. E isso é verdade para todos nós.

Raio X

William Ury, 70, é um antropólogo americano. É cofundador do Programa de Negociação de Harvard. Criou uma rede internacional de negociadores com o ex-presidente Jimmy Carter e atuou em mediação de conflitos no Oriente Médio, na Ucrânia, na Colômbia e no caso Abilio Diniz/Casino.

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