Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Eu nunca

A indignação fica difícil quando as atitudes reprováveis dos outros nos são familiares

Não sei se já disse mas, para mim, dos cinco maiores poetas de sempre da língua portuguesa, dois ou três são o Fernando Pessoa.

Um deles, chamado Álvaro de Campos, escreveu o "Poema em Linha Reta", que diz: "Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. (...) / Toda a gente que eu conheço e que fala comigo / Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, / Nunca foi senão príncipe —todos eles príncipes— na vida... / Quem me dera ouvir de alguém a voz humana / Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; (...) / Arre, estou farto de semideuses! / Onde é que há gente no mundo?"

Ilustração
Luiza Pannunzio/Folhapress

Temo que seja uma pergunta retórica mas, se não for, não sei a resposta. Não sei onde há gente no mundo. Mas sei onde fica a casa dos príncipes: é no Facebook.

Quase todos os posts poderiam ser resumidos a duas palavras: "Eu nunca". Eu nunca faria isso. Eu nunca seria capaz de dizer o que ele disse. Eu nunca aceitaria o que aquele vendido aceitou.

É provavelmente por isso que eu não tenho Facebook. Não duraria um minuto, porque sou do time "eu já". Eu já escolhi o caminho errado sabendo que era o errado. Eu já cedi às piores tentações. Eu já optei por me calar, fingir que não vi, afastar-me de uma injustiça, porque isso era o mais fácil. Ora, isso não dá bons posts de Facebook.

Ninguém diz: "Bom dia, hoje fingi uma gripe para me livrar de compromissos. Vou colocar também uma foto do meu almoço, que não é muito bom. Na verdade, é meio deprimente, é só uma coisa que eu fiz à pressa, por preguiça, sem cuidado nem brio. P.S.: Ainda não tomei banho".

A indignação —o estado normal das pessoas no Facebook— fica difícil quando as atitudes reprováveis dos outros nos são tão, tão familiares.

Para as pessoas do Facebook, são falhas inadmissíveis. Mas eu, muito menos puro, sei que tenho esses mesmos defeitos em igual número e grau —sei até que, para todos os efeitos, fui eu que os inventei.

Os espertinhos dirão: "Ahá! Você está a fazer o mesmo. No fundo, está a dizer: eu nunca digo 'eu nunca'. Você também é time 'eu nunca'". Estou preparado para vocês, espertinhos. Claro que eu também digo "eu nunca". É irresistível. Sabe tão bem fingir que se é semideus. Eu só não consigo fingir por muito tempo.

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