Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Notícias sobre intoxicação

Eu acabo de perceber que estou todo podre, os meus últimos dias são estes

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Parece que tudo está de tal maneira contaminado por glifosato que todo o mundo tem no organismo vestígios do herbicida que a Organização Mundial de Saúde classifica como provável cancerígeno. 

Já se dizia que o frango tinha hormônios, que a vaca tinha antibióticos, que o peixe tinha mercúrio e agora que tudo tem pesticidas. 

Confesso que é um grande alívio. Quando tudo está infectado, não há nada a temer. Qualquer estratégia para evitar o mal é fútil. Portanto, há que aproveitar. 

É como com o pecado. Só há uma coisa pior do que pecar: é pecar mal. Pecar mal é pecar duas vezes. Um pecador incompetente peca pelo pecado e peca pela incompetência. 

A partir do momento em que se estabelece que o pecado vai ser cometido, então é para pecar a sério. Para transgressõezinhas, não me convidem. Ou é ou não é. Essa ética do pecador, aliás a única ética que eu tenho capacidade para seguir, chega agora à comida. 

Acabaram as preocupações, as estratégias para evitar certos alimentos, os cuidados com a proveniência dos ingredientes: tudo é mau e estamos todos perdidos. Nunca estive tão feliz.

O apocalipse nutritivo dá-me uma fulgurante alegria. Ingiro refeições ricas em colesterol? Sim, e depois? Seja como for, estou todo carcomido por dentro. 

Fará bem fumar um charuto depois do almoço e outro depois do jantar? É provável que não, mas isso só seria preocupante se eu não tivesse o organismo atafulhado de coisas tóxicas. Não se nega um cigarro a um moribundo, e eu estou a morrer de glifosato há décadas.

Uma vez li um texto de Marina Keegan, uma escritora, dramaturga e jornalista que era intolerante ao glúten. Dizia que, se soubesse o dia em que iria morrer, encomendaria uma última refeição de pizzas, hambúrgueres, donuts e todos os alimentos com glúten que não tinha podido comer. 

Keegan morreu com 22 anos, num desastre de automóvel, apenas cinco dias depois de se ter graduado na universidade de Yale. Não pôde cumprir o seu desejo. 

Eu acabo de perceber que estou todo podre. Os meus últimos dias são estes. Venha a picanha com antibióticos, o frango caipira com hormônios, o badejo com mercúrio, tudo acompanhado de couve mineira salteada com glifosato.  

Agora é que eu me vou divertir a sério.

Ilustração
Luiza Pannunzio/Folhapress

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