Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Ricardo Araújo Pereira

Foi embora e deixa mulher e duas filhas, para os outros arrumarem

As minhas últimas palavras não serão interessantes nem sábias

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A gente precisa mesmo tratar melhor os defuntos. Quando chegar a minha vez, já sei o que vão dizer: “Morreu. Deixa mulher e duas filhas”. Como assim, “deixa”? Há necessidade de ser desagradável nesta hora? “Deixa mulher e duas filhas.” Como se eu fosse uma criança que abandona o quarto desarrumado. Deixa mulher e duas filhas por aí espalhadas, uma para cada lado. Foi embora e deixa mulher e duas filhas, para os outros arrumarem. Além disso, é uma formulação que parece achar preferível que eu as levasse comigo. “Morreu. Mas ao menos levou a mulher e as duas filhas.” Acho que não faz sentido.

Ilustração de uma pessoa com a mão na testa vestindo uma blusa de manga longa, na qual está escrito “the end”. No chão, há um livro caído com o título “Como as democracias morrem”
Luiza Pannunzio/Folhapress

Outro problema é a gente não prestar atenção ao que uma pessoa diz, exceto quando ela está a morrer. Registramos com muita solenidade as últimas palavras de alguém, mesmo que tenhamos ignorado todas as palavras anteriores. Há livros com compilações de últimas palavras, mas talvez fosse interessante fazer uma antologia de penúltimas palavras. Talvez também sejam sábias. Porque é isso que se espera das últimas palavras: sabedoria, sensatez, uma iluminação especial na hora da morte. Como se a pessoa tivesse acumulado conhecimento ao longo da vida e, no último momento, estivesse finalmente capacitada para fazer um resumo da sua opinião sobre a existência.

Pensamentos expendidos 15 dias antes de morrer não contam. As duas semanas seguintes são fundamentais para compor o juízo do moribundo.

Acontece que, no meu caso, eu nunca fui sensato e continuo a achar da vida o que um banhista que está a ser violentamente sacudido pelas ondas acha da praia: ainda não vi bem, não tive dois minutos seguidos para olhar à volta, tomar notas e formar um parecer.

Portanto, conhecendo-me, as minhas últimas palavras não serão interessantes nem sábias. O máximo que eu posso fazer é torná-las misteriosas. Muito abertas à interpretação. Tenho pensado muito nisso. Decidi que vou tentar estar atento ao momento da morte e, quando ele chegar, digo: “O mais importante é nunca esquecer que”.

E pronto. Quem ficar irá gastar horas a tentar imaginar o que aquele moribundo queria dizer. Pelo menos até alguém se lembrar de que ele era um irresponsável —tanto assim é que deixa mulher e duas filhas.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.