Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Descrição de chapéu

App Timeleft, que permite jantar com desconhecidos, é pura e simples devassidão

Em vez de escolher uma pessoa para comer, a gente escolhe uma pessoa para comer com

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Agora é que o mundo está perdido. Eu sei que muita gente vem anunciando isso há bastante tempo, mas agora é que é.

Percebi que o apocalipse tinha chegado quando soube do novo aplicativo Timeleft, que é a maior pouca-vergonha que as novas tecnologias já nos proporcionaram. Eu já conhecia o Tinder, contra o qual nada me move. Compreendo e respeito o desejo de transar com desconhecidos. Mas o Timeleft é pura e simples devassidão.

Uma planta no canto direito do desenho encaminha o nosso olhar para as duas pessoas sentadas em bancos com encosto que estão de frente uma pra outra, separadas por uma mesa - próximo de uma janela de vidro. Elas estão de perfil, quase de costas ao leitor, não vemos o rosto delas. A da esquerda, de cabelos curtos, veste calça, camiseta, cinto e tênis preto, tem os cotovelos sobre a mesa e as mãos no rosto. A da direita, de cabelos longos e lisos, tem o braço direito fazendo apoio ao queixo e o outro braço sobre a mesa onde vemos também dois copos com canudos, alguns talheres e tigelas/bowls. Ela usa óculos. Ao lado delas, num banco sem encosto, duas outras pessoas, vestindo calça, jaqueta, camiseta e tênis. A da esquerda usa um boné e está com os braços sobre as pernas. Apoiado no banco em que estão sentados vemos uma xícara e um bowl com talheres dentro. O outro personagem usa óculos e segura com a sua mão direita um bowl e com a esquerda uma xícara na altura do peito. Logo. ao pé desse banco lemos a frase: inTIMIDAde via APP.
Ilustração de Luiza Pannunzio para coluna de Ricardo Araújo Pereira de 14 de abril de 2024 - Folhapress

Trata-se de um dispositivo que permite ir jantar fora com um grupo de desconhecidos. Ninguém se conhece, à mesa. Olha a imoralidade. Em vez de escolher uma pessoa para comer, a gente escolhe uma pessoa para comer com. É essa preposição que estraga tudo.

Faz falta um livro que seja uma combinação do "Kama Sutra" com a gramática e que elucide o público acerca das preposições sexuais. Para que todo o mundo compreenda quais são as preposições aceitáveis e quais são as absolutamente imorais.

Que características procuramos num desconhecido que desejamos comer? Duas ou três, apenas —ou talvez menos, consoante a dimensão do desejo. Por vezes cruzamo-nos com uma pessoa na rua e basta um gesto, um olhar, um decote. Mas gostaria de dizer quantas vezes avistei uma desconhecida e pensei: ora, aqui está uma cidadã com a qual gostaria muito de ir a um jantar de degustação. Tenho essa contabilidade feita: foram zero vezes. Zero.

Às vezes, alguém organiza um jantar de amigos e uma das pessoas leva um desconhecido. É com muita frequência embaraçoso —e é só um.

Agora imaginem uma mesa só com desconhecidos. Descobrir, no fim das entradas, que não temos nada em comum com três deles. Ao meio da refeição, verificar que outros dois são irredimivelmente chatos. Na hora da sobremesa, lamentar não ter ficado em casa com uma refeição congelada.

É a diferença radical entre o Tinder e o Timeleft. O que se pretende fazer no Tinder é quase sempre melhor com um desconhecido do que sozinho; o que se faz no Timeleft é quase sempre melhor sozinho do que com um desconhecido.

Creio que o mundo ainda terá salvação se alguém elucidar as pessoas sobre as vantagens do sexo e as desvantagens da comensalidade com desconhecidos. Contatem-me.

Mas não para jantar.

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