Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Por que a força da rainha Elizabeth 2ª é a fraqueza de Vladimir Putin

Poder político pessoal do russo é maior do que o do rei Charles 3º, mas carece de legitimidade

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The New York Times

Por que Vladimir Putin não está conseguindo vencer a Guerra da Ucrânia? As respostas se multiplicam: arrogância, corrupção e incompetência do lado russo; bravura militar, liderança sagaz e munições americanas do lado ucraniano.

Mas a morte da rainha Elizabeth 2ª e a onda de esplendor antiquado ajudam a iluminar uma das principais fraquezas do presidente russo. Ele foi prejudicado em sua luta porque seu regime carece da qualidade mística que chamamos de legitimidade.

Legitimidade não é a mesma coisa que poder. É o que permite que o poder seja exercido com eficácia em meio a provações e transições, retrocessos e sucessões. É o que fundamenta a autoridade política, mesmo quando essa autoridade não está proporcionando prosperidade e paz. É o que os governantes buscam quando pedem que suas sociedades se sacrifiquem.

O presidente russo, Vladimir Putin, discursa em cerimônia com diplomatas estrangeiros no Kremlin - Pavel Bedniakov - 20.set.22/Sputnik/AFP

Na maior parte do mundo hoje existem apenas duas bases sólidas de legitimidade: o "demos" e a nação –a democracia e a autodeterminação nacional. A legitimidade que antes era ligada ao domínio imperial se esvaiu, assim como, exceto no Oriente Médio e em alguns outros lugares esparsos, a legitimidade da monarquia hereditária.

Existem reivindicações alternativas de legitimidade –a autoridade ideológica invocada pelo Politburo de Pequim, a autoridade religiosa invocada pelos mulás em Teerã–, mas esses pretendentes contam mais com a repressão para seu poder e sua sobrevivência.

A pompa elizabetana enfatiza essa realidade global porque a Casa de Windsor é uma exceção que confirma a regra. Como quase nenhuma outra instituição no Ocidente, fora o Vaticano, a monarquia britânica manteve uma legitimidade pré-moderna e pré-democrática; no extravasamento da dor secular ainda havia a sensação de que a rainha foi de alguma forma incumbida por Deus para sentar-se no trono.

Mas a família real manteve essa legitimidade abrindo mão de tudo, exceto uma fração de seu poder pessoal; tem legitimidade e pouco mais.

Em Moscou, temos o contraste: poder político pessoal, muito maior do que o poder do rei Charles 3º, que carece de estruturas de legitimação profundas. Putin é um pseudoczar, mas não real, sem unção divina ou promessa antiga.

Ele reivindica certa legitimidade nacionalista russa, mas seu sistema é na verdade um império poliglota. Ele reivindica certa legitimidade democrática ao realizar eleições regulares, mas seus resultados não são justos nem livres.

Então, tudo o que ele tem para realmente justificar o poder é o sucesso ou o que ele entregou durante a maior parte de sua carreira –uma Rússia mais rica e mais estável do que nos anos que antecederam sua Presidência e uma série de jogadas de política externa bem-sucedidas.

Mas agora vem o teste, a jogada que não deu certo, o espectro da derrota, e o que ele tem a recorrer? Não a autoridade de um czar: ele não pode mobilizar o povo russo como súditos feudais, convocando-os a tratar os grandes projetos da Rússia imperial como seus. Não a autoridade de um líder nacional numa luta pela autodeterminação: ele é o invasor, é a Ucrânia que está lutando por uma nação. E não a autoridade de um líder democrático: ele não pode ter sua política guerreira justificada numa eleição, como fez Abraham Lincoln em 1864, porque qualquer eleição seria uma farsa.

Nos últimos anos, à medida que líderes autoritários ganharam terreno e a democracia decaiu, existe o temor de que essas figuras tenham uma mão mais forte do que os ditadores do passado, porque seu autoritarismo é mais suave e sutil e envolto nas estruturas legitimadoras das eleições.

Mas a situação difícil de Putin sugere que esse autoritarismo mais sutil é mais fraco do que seus predecessores em uma crise. Os regimes totalitários do século 20 muitas vezes se apossaram da retórica da democracia e do nacionalismo, mas no fundo fizeram suas próprias (e terríveis) reivindicações de legitimidade —a república popular, o domínio da raça superior.

Putin, sem tais fundamentos, não pode ser apenas um orgulhoso imperialista ou autocrata ou revolucionário: ele tem que legitimar suas ambições nas estruturas de seus inimigos ocidentais, com resultados absurdos (a Ucrânia não é uma nação real, a Rússia está libertando a Ucrânia dos nazistas, os russos estão lutando pelos direitos humanos).

Existem paralelos com a política interna dos Estados Unidos, onde movimentos propensos ao autoritarismo de qualquer modo se legitimam na linguagem familiar da democracia. Assim Donald Trump tem que afirmar que a vontade do povo foi frustrada em 2020 —não que ele tivesse direito a um governo autocrático. Da mesma forma, a pressão da esquerda para cancelar ou desfazer plataformas, para manobrar a opinião pública por meio da censura, tende a ser justificada em nome da "proteção da democracia".

Esse padrão não significa que não haja perigos autoritários em nossa política, assim como os problemas de legitimidade de Putin não tornam sua invasão menos destrutiva. Mas ajuda a ver nossas crises claramente se reconhecermos que elas ainda acontecem dentro das linhas da modernidade tardia –que enquanto Elizabeth 2ª é sepultada nada parecido com sua legitimidade radicalmente antidemocrática parece pronto para renascer.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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