Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Por que a Igreja Católica virou prisioneira do Concílio Vaticano 2º

Visto como revolução nos anos 1960, encontro se tornou encruzilhada para religiosos progressistas e conservadores

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The New York Times

O Concílio Vaticano 2º, a grande revolução na vida da Igreja Católica moderna, foi aberto em Roma há 60 anos. Muitas coisas daquele mundo dos anos 1960 já desapareceram, mas o Concílio continua presente: a Igreja, dividida, não tem como escapar de suas consequências, que continuam presentes.

Por muito tempo essa teria sido uma afirmação progressista. Nas guerras internas do catolicismo que se seguiram ao concílio, os conservadores interpretaram o Vaticano 2º como um evento finito, singular e limitado –um conjunto particular de documentos que continham evoluções e mudanças de posição (relativas especialmente à liberdade religiosa e às relações entre católicos e judeus) e que abriram a porta a uma versão revista da missa proferida no vernáculo.

Para os progressistas, porém, essas mudanças específicas representaram apenas um ponto de partida; houve também o "espírito" do concílio, semelhante ao Espírito Santo em seu modo de operação, que supostamente conduziria a Igreja para outras transformações e para a reforma perpétua.

Papa Francisco caminha ao lado de um guarda ao chegar para a audiência-geral no salão Paulo 6º, no Vaticano
Papa Francisco caminha ao lado de um guarda ao chegar para a audiência-geral no salão Paulo 6º, no Vaticano - Vincenzo Pinto -10.ago.22/AFP

A interpretação dominou a vida católica nos anos 1960 e 1970, quando o Vaticano 2º foi evocado para justificar alterações crescentes –à liturgia e ao calendário da Igreja, às orações, aos costumes dos leigos, à vestes dos clérigos, à arquitetura da igreja, à música sacra, à disciplina moral católica.

Então a interpretação conservadora ganhou ascendência em Roma com a eleição de João Paulo 2º, que lançou uma série de documentos que visavam estabelecer uma leitura fidedigna do Vaticano 2º, limitar os experimentos e alterações mais radicais e provar que o catolicismo anterior aos anos 1960 e o catolicismo posterior à década ainda integravam a mesma tradição.

Agora, nos anos de Francisco, a interpretação progressista voltou —não só com a reabertura de debates morais e teológicos e o estabelecimento de uma governança que segue um estilo permanente de escuta, mas também na tentativa de mais uma vez suprimir os ritos católicos mais antigos, a liturgia tradicional em latim como ela era antes do Concílio Vaticano 2º.

A era de Francisco não devolveu ao catolicismo progressista o vigor jovem que ostentou no passado, mas comprovou o valor de parte da visão liberal. Através de sua governança e, de fato, sua existência, o papa provou que o Concílio Vaticano 2º não pode ser reduzido simplesmente a uma única interpretação fechada ou ter seu trabalho visto como acabado, com a experimentação encerrada e a síntese restaurada.

Em lugar disso, o concílio apresenta um desafio contínuo, cria divisões que parecem incontornáveis e deixa o catolicismo contemporâneo diante de um conjunto de problemas e dilemas que a Providência ainda não resolveu.

Seguem três afirmações para resumir os problemas e dilemas. Primeiro: o concílio foi necessário. Talvez não na forma exata que assumiu –um encontro ecumênico que convocou todos os bispos de todo o mundo–, mas na medida em que a Igreja de 1962 necessitava de adaptações importantes e precisava ser repensada e reformada de modo significativo.

Essas adaptações tinham que fazer referência ao passado: a morte da política "do trono e do altar", a ascensão do liberalismo moderno e o horror do Holocausto, tudo isso demandava respostas mais completas. E elas também precisavam ser voltadas ao futuro, na medida em que o catolicismo do início dos anos 1960 havia apenas começado a levar em conta a globalização e a descolonização, além da era da informação e as revoluções sociais desencadeadas pela invenção da pílula anticoncepcional.

A tradição sempre dependeu da reinvenção: mudar para permanecer o mesmo. Mas o Vaticano 2º foi convocado num momento em que a necessidade dessa mudança estava prestes a se tornar especialmente aguda.

Entretanto, o simples fato de o momento exigir uma reinvenção não quer dizer que um conjunto específico de reinvenções será bem-sucedido, e hoje possuímos décadas de dados para justificar uma segunda afirmação abrangente: o concílio fracassou.

Não se trata de uma análise truculenta ou reacionária. O Concílio Vaticano 2º fracassou segundo os critérios definidos por seus próprios defensores. A ideia era que ele tornasse a Igreja mais dinâmica, mais atraente para as pessoas modernas, mais evangelizadora, menos fechada, desgastada e autorreferencial. Ele não realizou nenhum desses objetivos.

A Igreja perdeu força em todas as partes do mundo desenvolvido após o Vaticano 2º, sob pontífices tanto conservadores quanto progressistas. Mas o declínio foi mais rápido nas regiões onde a influência do concílio foi mais forte.

A intenção por trás da nova liturgia era aprofundar o engajamento dos fiéis com a missa; em vez disso, os fiéis começaram a dormir mais tarde aos domingos e a abrir mão do catolicismo em favor da Quaresma. A Igreja perdeu boa parte da Europa para o secularismo e boa parte da América Latina para o pentecostalismo –contextos e adversários muito diferentes, mas resultados notavelmente semelhantes.

E o catolicismo pós-década de 1960 tornou-se ainda mais introspectivo que antes, mais consumido por suas intermináveis batalhas de direita versus esquerda. E, na medida em que se engajava com o mundo secular, era apenas uma imitação insossa deste –através de música de violão de baixa qualidade, teorias políticas que não passavam de versões de partidarismo de esquerda ou direita vestidas de trajes novos, ou, ainda, igrejas modernas e feias que ficavam ultrapassadas dez anos depois de construídas e acabaram vazias pouco depois disso.

Não existe racionalização inteligente, esquemática intelectual, propaganda santimonial do Vaticano (um documento recente típico fala do "sustento doador de vida dado pelo concílio", como se fosse a própria eucaristia) que consiga fugir dessa realidade nua e crua.

Mas tampouco alguém pode desviar-se da terceira realidade: o concílio não pode ser desfeito.

Não há como voltar ao estilo de autoridade pontifical que tanto João Paulo 2º quanto Francisco tentaram exercer –o primeiro para restaurar a tradição, o segundo para suprimi-la–, apenas para serem frustrados pela ingovernabilidade da Igreja moderna.

Não há como voltar ao tipo de culturas católicas herdadas sólidas que ainda existiam até meados do século 20 e cuja decomposição subsequente, embora fosse inevitável em certa medida, foi claramente acelerada pela iconoclastia interna da Igreja. Não há como voltar à síntese moral e doutrinal, estampada com a promessa de infalibilidade e consistência, que os conservadores passaram as duas últimas gerações insistindo que ainda existe, mas que na era de Francisco se mostrou tão instável que os mesmos conservadores acabaram entrando em choque com o papa.

O trabalho do historiador francês Guillaume Cuchet, que estudou o impacto do Vaticano 2º sobre seu país, antes profundamente católico, sugere que foram a escala e a velocidade das reformas da Igreja, tanto quanto qualquer substância em particular, que fragmentaram a lealdade católica e aceleraram seu declínio.

Mesmo que as mudanças adotadas pelo concílio não tenham alterado a doutrina oficialmente, a reescritura e renovação de tantas orações e práticas inevitavelmente levou católicos comuns a indagar-se por que uma autoridade que de repente declarou que estivera equivocada em tantas frentes ainda podia ser vista como confiável para falar em nome do próprio Jesus Cristo.

Depois de tal choque, que espécie de síntese ou restauração é possível? Hoje todos os católicos se veem convivendo com essa pergunta, porque cada uma das facções da Igreja está em conflito com alguma versão da autoridade dela. Os tradicionalistas estão em conflito com as políticas oficiais do Vaticano, os progressistas, com seus ensinamentos tradicionais; os conservadores estão em conflito com o estilo liberalizador de Francisco, e o próprio papa está em conflito com a ênfase conservadora de seus predecessores imediatos. Nesse sentido, todos nós somos filhos do Vaticano 2º, mesmo que critiquemos ou lamentemos o concílio –e possivelmente nunca somos mais filhos dele do quando o estamos fazendo.

Começamos a partir de onde estamos. As linhas de cura correm paralelamente às de fratura; as feridas permanecem após a ressurreição; e mesmo o catolicismo que chegar –não hoje, mas algum dia— a um verdadeiro pós-Vaticano 2º ainda será marcado pelas rupturas desnecessárias criadas por sua tentativa de empreender uma reforma necessária.

Tradução de Clara Allain

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