Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu The New York Times

A consciência social modificou Hollywood?

Entretenimento infantil, no qual houve mudança política, é um indicativo do momento atual

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The New York Times

"Tár", o melhor filme de 2022, seja qual for o que a Academia de Cinema de Hollywood decida premiar, é um filme sobre as guerras culturais contemporâneas que se recusa a participar delas.

Retrata a brecha geracional que se abre entre os idosos liberais e os jovens progressistas em muitas instituições culturais, ilustra a poderosa influência da cultura do cancelamento e do #MeToo e usa ambas as forças de uma maneira verossímil (embora alucinatória ou sobrenatural) para impulsionar o declínio em espiral de sua personagem-título, a maestrina fictícia Lydia Tár, interpretada por Cate Blanchett.

E faz tudo isso com espírito de ambiguidade controlada, de um ponto de vista externo às forças que descreve –o que permite julgamentos variáveis sobre a ruína da personagem principal, da mesma forma que quedas comparáveis na vida real.

A maior parte da arte não é tão independente de sua própria matriz cultural, e é por isso que o padrão na era da consciência social –ou despertar, ou como você quiser chamar o "wokeness", a forma distinta de progressismo da justiça social que invadiu as instituições de elite nos últimos anos– é que o território cultural seja colonizado por novas regras e senhas ou crie fama como zona de resistência ao "despertar".

Cate Blanchett em cena do filme "Tár", de Todd Field
Cate Blanchett em cena do filme 'Tár', de Todd Field - Divulgação

Os exemplos da primeira categoria são inúmeros, de curadoria de museus a ficção para jovens adultos; comédia stand-up e redação de ensaios pelo Substack são exemplos discutíveis da segunda categoria. (Mesmo que, sim, haja muitos quadrinhos e usuários do Substack progressistas.)

Mas os filmes são um caso interessante. A política cinematográfica mudou tanto desde, digamos, os anos intermediários do governo Obama? "Tár" vem a ser um filme sobre "wokeness" (e muitas outras coisas).

Mas existe uma corrente dessa consciência no cinema que é claramente da nossa era no modo como olhamos para trás e vemos certos filmes que incorporam o cinismo esquerdista dos anos 1970 ou o patriotismo reaganista dos anos 1980? É uma pergunta delicada, porque Hollywood sempre produz muitos filmes que se inclinam para a esquerda explicitamente (junto com muitos filmes que se inclinam para a direita de forma mais tácita, como todo filme de Christopher Nolan e a maioria dos de terror). Portanto, apenas identificar filmes com mensagens liberais não nos diz muito sobre o que mudou nos últimos anos.

A política de um filme como a sequência de "Avatar", de James Cameron, por exemplo, sobre um ecossistema virgem espoliado pelo colonialismo invasor e defendido pela resistência indígena, poderia ser razoavelmente descrita como "woke". Mas é exatamente a mesma política do original de 2009, que foi feito na maré alta do otimismo pós-racial e do liberalismo tecnocrático e que reciclou arquétipos que remontam a filmes como "Dança com Lobos". Da mesma forma, a série de filmes de luta de classes do ano passado –"The Menu", "Triângulo da Tristeza" e o terrível "Glass Onion"– são esquerdistas em certo sentido, mas não de uma forma que pareça específica do progressismo desta era.

Claramente, a era da justiça social influenciou a representação em Hollywood (embora não o suficiente, se você acha que "A Mulher Rei" merecia uma indicação ao Oscar). Há elencos mais diversificados, mais projetos liderados por minorias, valorização de narrativas não-brancas e centradas nas mulheres. E quando as pessoas revisitarem a política cultural desta época as controvérsias sobre representação certamente serão lembradas –as guerras de fãs sobre "Os Últimos Jedi", a reação aos "Caça-Fantasmas" exclusivamente femininos e assim por diante.

Mas o impulso à diversidade não afetou necessariamente uma transformação temática maior. Ter mais papéis para minorias raciais em filmes de quadrinhos não radicalizou especialmente a política morna do Fanático da Marvel, por exemplo. (O Erik Killmonger de Michael B. Jordan consegue as melhores falas em "Pantera Negra", mas ele ainda é o vilão.) E na indústria de grandes sucessos em geral há mais continuidade do que mudanças na última década.

Enquanto isso, na produção de filmes de prestígio podemos identificar alguns momentos-chave e filmes que parecem emblemáticos de uma mudança política: a surpreendente vitória de "Moonlight" sobre "La Land" para melhor filme de 2017 teve uma vibração de interseccionalidade derrotando a brancura.

Os indicados a melhor filme do ano seguinte incluíram dois filmes que poderiam liderar qualquer programa de estudos do cinema de consciência social nas próximas décadas: o excelente "Corra!", com sua obamafilia branca em tom de filme de terror, e o não tão excelente "A Forma da Água", com sua aliança de identidades subalternas derrotando o vilão cis de Michael Shannon tipo Cold Warrior. (Uma nota lateral: falta escrever um grande ensaio sobre "Corra!" e "O Casamento de Rachel", de 2008, duas visões muito diferentes de romances interraciais e brancos liberais bonzinhos, como suportes da era Obama.)

Mas a variedade de filmes de prestígio desde 2017, incluindo os indicados a melhor filme deste ano, não indica uma transformação drástica na visão de mundo política de Hollywood. A diminuição do público é o que importa e, embora alguns filmes com temas políticos estivessem entre os derrotados do último outono, o fracasso de bilheteria de filmes como "Os Fabelmans", "Babilônia" e até "Tár" não pode ser ligado ao fato de a indústria ter despertado e quebrado. É um problema de entretenimento, não de política.

Em um lugar, porém, podemos ver uma clara mudança político-cultural: em filmes infantis, desenhos animados e filmes da Disney especialmente, que mostram uma disjunção real em algum lugar na década de 2010. Há diversificação e multiculturalismo, com as velhas narrativas de contos de fadas europeus tendo seu último aplauso em "Enrolados" e "Frozen" e depois dando lugar à Polinésia de "Moana", ao Sudeste Asiático de "Raya e o Último Dragão" e à Colômbia de "Encanto". Mas além disso também há grandes mudanças temáticas, que parecem estar ligadas ao novo tipo de progressismo.

Por exemplo, o romance está enfaticamente fora de questão; surge uma espécie de manejo terapêutico do drama e de trauma familiares. Os antagonistas deixam de ser vilões pessoais e se tornam cada vez mais estruturais ou miasmáticos; o conflito nasce de mal-entendidos, acidentes ou degradação ambiental em vez de ciúmes ou desejo de poder. Ou então o verdadeiro vilão é uma figura autoritária que conduziu a todos a um conflito desnecessário: há uma ênfase na desconstrução de falsas histórias e falsas mitologias familiares, ou ao menos em despertar do feitiço de narrativas das gerações anteriores.

Os filmes mais antigos da Disney, especialmente os da década de 1990, muitas vezes colocam um verniz liberal-individualista nas estruturas tradicionais dos contos de fadas, com corajosas heroínas autorrealizadas encontrando aventuras e suas almas gêmeas na sombra de uma geração mais velha trapalhona, sem noção ou antipática. Nos filmes desta época, começando até certo ponto com "Frozen" e desenvolvendo-se mais plenamente daí em diante, a geração mais velha ainda é geralmente equivocada ou antipática, mas o espírito individualista é reduzido. O objetivo agora é cultivar alianças, abraçar relacionamentos fraternos e amizades, em vez de se apaixonar, sendo a aventura mágica uma espécie de terapia de grupo para a comunidade, mais uma fonte de reconciliação do que de transformação.

E o excesso de aventuras também é de certa forma reprovado. Como Sonny Bunch, do Washington Post, observou recentemente, 2022 teve dois grandes lançamentos infantis: a produção da Disney-Pixar "Lightyear" e "Strange World", da Disney, que eram filmes sobre exploradores cuja mensagem era de fato antiexploração, ensinando seus protagonistas a ficar em casa, abraçar a sustentabilidade e se contentar com expectativas reduzidas –quase como se seus criadores tivessem lido um pouco demais Tema Okun e decidido que a busca do herói é apenas mais uma faceta da cultura da supremacia branca.

"Lightyear" e "Strange World" também foram decepções comerciais, e não está claro que algum dos filmes infantis cujos temas acabei de descrever sejam poderosos ou memoráveis como obras de arte.

Mas talvez seja exatamente isso o que os torna um indicador útil. Como os filmes de ação medíocres dos anos 1980, esse tipo de entretenimento infantil é uma espécie de música de fundo ou papel de parede cultural para o nosso momento. Não necessariamente o que as crianças querem, mas o que a cultura quer para elas. Não é um cinema de consciência de uma forma grandiosa e óbvia, mas um conjunto ideológico de valores que surge disfarçadamente numa tarde de sábado, quando toda a família está cansada e sem ideias –mas pelo menos há uma assinatura Disney+ e o controle remoto ao alcance da mão.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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