Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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A imitação do 6 de Janeiro no Brasil e a futilidade do populismo

Vandalismo em Brasília foi ato de pura encenação, desvinculado das realidades do poder

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The New York Times

Há dois anos debatemos se a característica essencial do motim de 6 de Janeiro, em Washington, a multidão incitada a invadir o Capitólio por estar frustrada com a eleição de 2020, foi a ambição em segundo plano ou a futilidade e a irrealidade na frente.

A ambição, que pertencia a Donald Trump e seu círculo íntimo reduzido, visava a provocar uma crise constitucional, que deveria começar com a intervenção de Mike Pence e culminar, de alguma forma, com a votação de Trump para um segundo mandato na Câmara dos Representantes.

A futilidade pertencia aos desordeiros, cuja violência e vandalismo eram uma expressão de "dreampolitik" (política de sonho) mais que um golpe –seu plano de sucesso inexistente, seu fim em detenções em massa e prisão predeterminada. E o desafio de analisar o 6 de Janeiro é que esses elementos existiram juntos, numa mistura instável que teoricamente poderia inspirar todo tipo de imitações —algumas vazias, desonestas e fantásticas, outras desestabilizadoras e mortalmente sérias.

Rescaldo da depredação no Palácio do Planalto após invasão de golpistas no domingo (8)
Rescaldo da depredação no Palácio do Planalto após invasão de golpistas no domingo (8) - Pedro Ladeira - 9.jan.23/Folhapress

Agora temos a primeira grande imitação internacional da nossa rebelião no Capitólio –os tumultos que ocuparam os prédios dos Três Poderes na capital brasileira no fim de semana passado, em nome do ex-presidente populista derrotado Jair Bolsonaro. E o que quer que se pense do original, a imitação até agora recai decisivamente na categoria irreal e fútil.

Os rebeldes queriam Bolsonaro de volta ao cargo, como os manifestantes do 6 de Janeiro queriam que Trump continuasse na Casa Branca. Eles acreditavam que a eleição presidencial brasileira havia sido roubada, tanto quanto os apoiadores de Trump acreditavam que Joe Biden tinha fraudado o pleito de 2020. Sua retórica ecoava a linguagem dos trumpistas americanos. Mas sua homenagem ao 6 de Janeiro foi apenas isso: um ato de pura encenação desvinculado das realidades do poder.

O momento foi revelador. Em vez de tentar interromper o trabalho do governo ou perturbar a transferência de poder, os baderneiros brasileiros invadiram a praça dos Três Poderes num momento em que seus edifícios vitais –o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e o palácio presidencial– estavam vazios.

O Congresso não estava em sessão, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva estava verificando os estragos de enchentes; Bolsonaro estava na Flórida. Não havia transferência de poder para impedir, nenhum governo para tomar, nenhum líder para restaurar. A única razão para fazer tal ato agora, ao que parece, era a data: 8 de janeiro é próximo o suficiente de 6 de janeiro para fornecer o frisson imitativo necessário.

Mesmo os jornalistas que se ocupam de ficar alarmados com os perigos do populismo pareciam um pouco perplexos com tudo aquilo. "O tumulto de hoje faz mais sentido se o objetivo for criar um eco visual do que aconteceu em Washington", escreveu Anne Applebaum, da revista The Atlantic, em vez de realmente impedir Lula "de exercer o poder". Na mesma publicação, Yascha Mounk chamou a cena de "surreal", com manifestantes que "pareciam quase fazer cosplay dos rebeldes americanos".

E como a experiência do 6 de Janeiro foi repleta de formas de cosplay –o Xamã do QAnon e as pessoas tirando selfies estavam envolvidos numa brincadeira, não numa intervenção política séria–, a imitação brasileira parecia ainda mais distante da realidade, um LARP (role play ao vivo) de um LARP.

Uma vez que Bolsonaro, assim como Trump, realmente foi eleito presidente, não se pode descartar todo o seu populismo como simples irrealidade, assim como não se pode descartar a violência que acompanhou os dois protestos de janeiro. (Embora a crescente violência no Peru, que foi abalado por protestos em nome de um presidente de esquerda que foi forçado a sair depois de tentar governar por decreto, provavelmente mereça mais atenção do que os tumultos brasileiros no momento.)

Mas podemos olhar para o 8 de Janeiro no Brasil e ver a confirmação de duas tendências do populismo contemporâneo. A primeira é a maneira como os movimentos populistas e os políticos de hoje tendem a alienar e alarmar os grupos interessados de cujo apoio eles precisariam para qualquer verdadeira mudança de regime ou revolução. Isso foi claramente verdadeiro no 6 de Janeiro nos EUA, onde todas as principais instituições eram contra os trumpistas, levando a discursos populistas não apenas contra a mídia e os tribunais, mas também contra o FBI e os militares.

Porém, mesmo no Brasil, com uma história de regime militar e suas Forças Armadas claramente favoráveis a Bolsonaro, o movimento para derrubar a eleição de Lula acabou isolado e impotente.

Em segundo lugar, em Brasília, como nos EUA, pode-se ver a tendência clara dos populistas de hoje de buscar o confronto ostensivo, o grande e fútil ato de protesto, acima do trabalho árduo da política e da elaboração de políticas públicas. Esta é uma qualidade que eles têm em comum com os radicais de direita (e outros radicais) do passado. Mas o noticiário a cabo e a internet ampliaram as oportunidades de gestos irreais, pura encenação, bases de fãs construídas sobre uma série incessante de derrotas gloriosas. Não importa se a revolução é real; contanto que esteja na televisão, é o que basta.

Para os inimigos do populismo, de centro-esquerda e progressistas, essa combinação de atributos os salvou mais de uma vez das consequências da própria arrogância ou seus erros. Por mais que nossas instituições de elite possam errar, os rebeldes populistas e seus avatares geralmente estão prontos com uma maior irresponsabilidade, uma antipolítica cambaleante, uma mistura tóxica de autoritário com incompetente –e então, como na nova Câmara republicana ou no malfadado governo conservador de Liz Truss no Reino Unido, uma volta às agendas impopulares que provocaram a rebelião populista.

Isso deixa os que não podem aderir ao progressismo presos por uma razão ou outra à direita (ou à margem da esquerda) com duas opções. Eles podem olhar esperançosos para o caos em busca de indícios de um populismo mais construtivo —do tipo que existe na teoria, mas não na prática trumpista ou bolsonarista, do tipo que intelectuais passaram a era Trump tentando importar para seu movimento, o tipo de nova direita ou ainda mais nova fusão esquerda-direita que está sempre logo ali.

Alternativamente, eles podem tentar olhar totalmente além do populismo, tratando-o como um experimento fracassado, como fundamentalmente irreal tanto em seus planos quanto em seus efeitos, assim como a bizarra imitação latino-americana do 6 de Janeiro nos EUA.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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