Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu jornalismo mídia

Jornalistas têm mais liberdade intelectual que professores universitários

Academia parece ser menos intelectualmente diversa e mais ideologicamente conformista do que jornalismo

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Nos últimos meses, houve diversos casos em que universidades de elite ou seus docentes opuseram algum tipo de resistência institucional a um progressismo censório.

Entre os exemplos mais conhecidos estão a recusa da universidade Cornell em criar um dispositivo, pedido pela assembleia estudantil, que tornaria obrigatório um aviso sobre conteúdos possivelmente aflitivos; a formação de um grupo de docentes de Harvard em defesa da liberdade acadêmica, e a condenação oficial pela Universidade Stanford das manifestações de repúdio que causaram interrupções numa palestra de um juiz conservador na escola de direito da universidade.

Campus da Universidade Harvard, em Cambridge, Massachusetts - Maddie Meyer -23.mar.20/AFP

Esses acontecimentos se encaixam com o argumento defendido neste ano na universidade Columbia por Musa al-Gharbi, um observador perceptivo da guerra cultural, de que o "Grande Despertar Woke" como período de fervor moral intenso pode estar chegando ao fim –que, depois de "dez anos seguidos de intranquilidade intensa nas instituições e nos polos de economia do conhecimento", estamos assistindo a uma despolitização parcial, uma diminuição do policiamento ideológico e das tentativas de cancelamento.

E também se encaixam, até certo ponto, com um ensaio publicado por Matt Yglesias, co-fundador da Vox convertido em Substacker, argumentando que os críticos do "wokeness" correm o risco de criar uma profecia autorrealizável se ficam constantemente enfatizando os obstáculos à livre expressão e as penalidades profissionais impostas à heterodoxia, em lugar de encorajar jornalistas e acadêmicos a reconhecer que é possível assumir uma postura controversa sem ser "desaparecido" profissionalmente.

Concordo com al-Gharbi que as tendências intelectuais recentes nas instituições liberais estão um tanto mais favoráveis ao livre debate e concordo com Yglesias que a coragem intelectual é necessária e que a linguagem do anti-"wokeness" às vezes induz as pessoas a imaginar uma situação mais soviética do que a que existe de fato. Mas penso também que há maneiras diferentes em que uma era de "intranquilidade intensa" e revolução ideológica pode dar lugar à paz cultural relativa.

Em algumas situações, a revolução pode ser revertida, pode-se opor resistência a ela ou ela pode desabar por conta própria. Em outras, porém, a paz pode chegar porque a revolução sente confiança em seu caminho à vitória final e deixa de sentir uma necessidade urgente de converter seus inimigos em exemplos; ela pode avançar confortavelmente para o entrincheiramento, a longa marcha institucional.

Este último cenário é sugerido pela resposta do acadêmico canadense Eric Kaufmann aos argumentos segundo os quais o "wokeness" já teria passado de seu auge. Kaufman diz que o movimento atual do pêndulo é real, mas que os executores ideológicos não precisam vencer todas as batalhas do curto prazo para conseguirem vencer a guerra institucional:

"... no longo prazo, o liberalismo está dando lugar ao progressismo nos espaços de elite. O novo liberalismo cultural na mídia reflete as posições de funcionários seniores e é contestado por grupos de afinidade e funcionários jovens. Isso é importante, porque pesquisas constatam de modo constante que a prevalência dos valores ‘woke’ é duas vezes maior entre esquerdistas mais jovens que entre os esquerdistas mais velhos. Mais de oito em cada dez universitários em 150 faculdades americanas de elite dizem que palestrantes que afirmam que o Black Lives Matter é um grupo de ódio ou o transgenerismo é um transtorno mental não devem ser autorizados a discursar no campus. E sete em cada dez pensam que um professor que diz algo que os estudantes consideram ofensivo deve ser denunciado à sua universidade. Os acadêmicos mais jovens são duas vezes mais censórios que os que têm mais de 50 anos. Essas são as equipes editoriais e os professores universitários de amanhã."

Há muito a ser dito sobre esse tópico, mas quero enfocar essa última sentença porque acho que ela junta no mesmo saco duas experiências que na realidade podem ser substancialmente diferentes: o clima intelectual na mídia e no jornalismo, por um lado, e na academia, por outro.

Ambas essas áreas profissionais estão sujeitas a pressões, ideias e incentivos que deram lugar ao progressismo "woke" e ambas têm passado por formas diversas de tumulto interno nos últimos anos. Mas minha impressão é a de que suas trajetórias ideológicas já divergiram um pouco e que é provável que se afastem mais à medida que a mudança geracional descrita por Kaufmann continuar.

Para que fique claro, estou falando de veículos de mídia que se enxergam tradicionalmente como empresas mainstream –ideologicamente neutros, de centro-esquerda ou progressistas com "p" minúsculo, não explicitamente políticos em sua missão formal, com algum espaço para a diversidade, embora a maioria de seus profissionais votem em candidatos do Partido Democrata. Essas organizações parecem menos propensas a virar bunkers ideológicos do que as instituições acadêmicas de perfil semelhante, devido a várias forças que limitam o entrincheiramento pleno da ideologia progressiva.

Para começar, a mídia é um empreendimento voltado para fora, movido por seu público, cuja viabilidade depende de ter algum tipo de mercado de massa. Os mercados de massa podem fazer suas próprias exigências ideológicas e, concretamente, capturar alguns jornalistas que trabalham para eles; podemos ver versões disso acontecendo em veículos de mídia explicitamente de direita na era de Trump.

Mas o "wokeness" tem frequentemente sido uma ideologia mais movida por elites, que exerce influência especial na academia e em organizações ativistas profissionalizadas, e suas regras e slogans tendem a partir de círculos internos e se expandir, em lugar de ser demandados primeiro por um público de massa.

Isso significa que sempre haverá um grande público potencial que não "capta" as novas regras ideológicas, pelo menos ainda não, e para o qual a dissensão ou o debate em torno da ordem emergente vai parecer muito mais normal e desejável do que pensam os verdadeiros crentes nela.

E, se a discussão normal parece estar prestes a desaparecer de uma publicação ou de um canal de mídia aberta, alguns leitores, ouvintes e espectadores irão a outros lugares para encontrar a discussão –para um veículo rival, uma startup, uma alternativa do tipo Joe Rogan ou uma plataforma como a Substack, se necessário. E alguns dos comentaristas e jornalistas que eles seguem, que optarem por trabalhar nesse terreno, podem acabar sendo ainda mais recompensados do que eram antes.

Isso não gera um veto direto à uniformidade ideológica, em especial dado o poder da consolidação, por exemplo no jornalismo impresso, em que o New York Times, o Wall Street Journal e o Washington Post ocupam posição muito maior em comparação à concorrência diminuída de outros jornais diários do que era o caso quando comecei como jornalista. Mas ainda cria freios baseados no mercado a determinados mecanismos internos de execução ideológica.

Para dar um exemplo tirado da TV, não é apenas a opinião interna na Netflix ou na HBO que decide se um especial de Dave Chappelle irá ao ar ou se o programa de Bill Maher continuará a ser transmitido: o público de massa também tem um voto importante. Usando a longevidade de Maher como exemplo, sempre haverá público para polêmica, discussões e combate na mídia. Talvez não um público tão grande quanto deveria haver –pois mais pessoas do que gostaríamos só querem ver suas posições confirmadas.

Mas o debate e a oposição entre posições contrárias ainda é um modelo econômico resiliente, que cria certa vantagem profissional para quem assume posições impopulares, para quem é o sujeito de quem as outras pessoas discordam, o representante do ponto de vista menos em voga.

Especialmente porque o jornalismo que quer alcançar um público amplo precisa obrigatoriamente engajar-se diariamente com alguma versão da realidade, ele tem que descrever e reagir a acontecimentos nacionais, tendências sociais e todos os argumentos (mesmo os que parecem reprováveis ou demagógicos) que influem sobre o processo democrático. Assim, a não ser que tudo sempre transcorra como querem os progressistas, isso gera constantes pontos de tensão entre a cobertura ideológica e a cobertura eficaz. Gera um incentivo permanente para o jornalista dar não apenas a seu público mas também à própria realidade uma voz naquilo que ele escreve ou fala sobre o mundo.

Já o ambiente acadêmico de elite, por outro lado, enfrenta pressões e incentivos substancialmente diferentes. Ele não só é descrito de modo estereotipado como estando fora de contato com as realidades comerciais e políticas concretas –vive intencionalmente um pouco fora de contato com essas forças.

Na melhor das hipóteses, a hipótese ideal, isso pode exercer um efeito liberador sobre o intelecto; se você não está preocupado em tentar agradar a leitores ou anunciantes, não precisa se preocupar com o alinhamento partidário atual e pode simplesmente falar a verdade nua e crua.

Porém, em um ambiente de entrincheiramento ideológico e uniformidade política crescente, esse ambiente protegido pode concretamente encolher o mundo intelectual que o acadêmico típico habita.

O avanço profissional depende de pequenas redes de patronos e aliados; incompatibilizar-se ideologicamente com um número restrito de potenciais tomadores de decisões-chave pode redirecionar ou torpedear uma carreira. E, com raríssimas exceções célebres, não existe força externa ou público não acadêmico cujo apoio ou favor possam resgatar sua vocação se o público interno se voltar contra você.

A estabilidade deve, em tese, contrabalançar esse problema, permitindo que acadêmicos que sobrevivem ao corredor polonês inicial desfrutem de mais liberdade que o jornalista, cujo emprego é mais precário.

E há acadêmicos que aproveitam essa liberdade ao máximo. Mas a estabilidade provavelmente funciona melhor para proteger docentes contra pressões externas, não internas. E tudo que é necessário para se conseguir estabilidade num ambiente de uniformidade ideológica –o trabalho social e interpessoal envolvido e o enraizamento profundo numa cultura universitária específica— cria incentivos poderosos para os acadêmicos não serem imprudentes no uso da liberdade e da segurança que conquistaram.

Como escreve Sarah Haider em um post bem argumentado sobre os limites da estabilidade no emprego como garantia de diversidade e debate, em muitos casos "a estabilidade pode simplesmente criar mais espaço para pressões sociais serem impostas com menos impedimentos". Porque "se conservar seu emprego deixa de ser uma preocupação, você não vai estar livre de preocupações. Você passará a ter mais preocupações ‘de luxo’, por exemplo, como conquistar e conservar a estima de seus pares."

E essas preocupações não serão sentidas como luxos se seus pares são as pessoas com quem você tem que trabalhar diariamente, seus vizinhos e seu círculo social, os pais das outras crianças na escola de seu filho, etc. Se esses relacionamentos desabam porque você se afastou demais das outras pessoas ideologicamente, então sua estabilidade de repente passa a valer muito menos do que valeria se você simplesmente se conservasse dentro de certos limites.

Conheci alguns acadêmicos que tinham estabilidade, mas cujas opiniões ou declarações os converteram em párias em suas áreas de atuação. Eles não se sentiram libertados –sentiram-se encurralados em empregos que os deixavam socialmente infelizes e sem meios aparentes de escape profissional.

É claro que essas mesmas dinâmicas também podem afetar jornalistas. Também nós temos vizinhos, colegas e pares cujo afeto e respeito preferiríamos não perder. Mas, ao lado do mundo social-profissional, também temos o mundo ao qual vendemos nosso trabalho –vendemos nosso produto, se você quiser colocar em termos grosseiros–, e existe algum equilíbrio entre essas pressões, algumas maneiras em que o "ser do contra" aufere benefícios no mercado que compensam os potenciais custos sociais.

Considere este trecho no artigo de Yglesias em que ele fala da experiência de deixar o Vox em meio à agitação ideológica e aos cancelamentos de 2020: "Também tive momentos em que parecia que o mundo havia enlouquecido e que me vi em maus lençóis no trabalho por dizê-lo. Mas o resultado disso também é que hoje ganho muito mais dinheiro do que ganhava, tenho um bom trabalho extra como colunista de uma organização noticiosa respeitável, e, contrariamente ao que temia quando me aventurei a ser Substacker, meus emails ainda costumam ser respondidos por pessoas no mundo da política e no governo".

Isso é basicamente uma destilação de tudo o que estou dizendo: Yglesias absorveu uma série de custos pessoais e profissionais por ser um tanto "não woke", mas encontrou compensações em outras partes do ecossistema da mídia, ao mesmo tempo em que conservou sua conexão com o mundo da política liberal prática –precisamente porque os políticos precisam ser práticos para vencer. Crucialmente, nesse processo todo ele não deixou de ser jornalista, apenas mudou sua identidade jornalística. Sua posição dentro da categoria mudou, mas não desmoronou.

Mas se você dissesse a uma acadêmica que receia ser cancelada –por exemplo, uma socióloga jovem com pontos de vista um pouquinho à direita dos de Yglesias— que, se ela perdesse a chance de estabilidade como docente universitária, ou se o número de colegas interessados em trabalhar com ela diminuiria muito, ou se ela perdesse várias oportunidades de pesquisa e publicação, "bem, você sempre tem a opção de começar a escrever no Substack", estaria lhe dizendo que ela poderia continuar a expressar suas opiniões, porém deixando de ser acadêmica.

E, embora eu seja totalmente a favor de exigir das pessoas coragem, honestidade intelectual e virtudes relacionadas, as pessoas que pedem isso precisam reconhecer que estão pedindo riscos e sacrifícios profissionais maiores de alguns grupos profissionais que de outros. Esse fato também sugere que líderes universitários que querem incentivar essas qualidades precisam fazer mais do que rejeitar os modos formais de execução ideológica progressista (avisos sobre conteúdos possivelmente aflitivos, juramentos de lealdade à diversidade, equidade e inclusão) e procurar desencorajar turbas de estudantes vaiadores.

As universidades precisariam oferecer algum tipo de estrutura de recompensa pela heterodoxia intelectual (ao menos a centrista, mesmo que não, Deus me livre, a conservadora), para que os acadêmicos, em especial jovens, vejam que existem compensações para contrabalançar os riscos sociais e profissionais.

É claro que há muitas outras forças além da pressão de pares profissionais em ação no mundo acadêmico, desde conflitos com políticos republicanos em estados de maioria republicana até os potenciais efeitos da desvalorização do SAT (algo como o Enem) e a perda de confiança na meritocracia, chegando à queda nas matrículas, que pode se acelerar na América devido ao baixo índice de natalidade.

No longo prazo, é provável que alguma combinação dessas forças altere radicalmente o clima ideológico dos acadêmicos de maneiras imprevisíveis. No curto prazo, porém, para as universidades mais protegidas das influências externas graças à sua riqueza e estatura, parece que todos os incentivos estão voltados a fazer a academia parecer mais sufocante, menos intelectualmente diversificada e mais ideologicamente conformista do que o mundo do jornalismo profissional provavelmente vai se tornar.

Tradução de Clara Allain

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