Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues, é membro da Academia Brasileira de Letras.

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Ruy Castro

Comer andando

Há hoje uma pressa que não existia até há pouco

“De hora em hora, o ser humano piora.” Ouvi essa frase de Carlos Heitor Cony e concordei. Para confirmá-la, basta seguir o noticiário e constatar que, em até menor espaço de tempo, há sempre alguém —indivíduos, grupos, governos, nações— cometendo hoje algo que seria inominável em, digamos, 1918. E, no entanto, em alguns pontos evoluímos. Nossos contemporâneos desenvolveram habilidades físicas, mecânicas e tecnológicas com que, até há pouco, nem se sonhava. 

Exemplo. Num passado recente, o máximo que um homem a pé pelas ruas podia fazer enquanto caminhava era chutar tampinhas ou assobiar. Hoje sabe fazer muito mais. Vejo gente andando pelas calçadas com um cheeseburger duplo numa mão, um refrigerante na outra e um celular espremido entre o queixo e o peito, e conseguindo desempenhar todas essas funções ao mesmo tempo —atravessar a rua, morder o sanduíche, tomar o refrigerante e falar ao celular—, sem confundir uma função com a outra, mesmo quando parte do ketchup já se transferiu para o celular. 

Há agora uma pressa que não existia e faz com que as pessoas se disponham a comer enquanto andam, quando é muito melhor fazer isto sentado a uma mesa, usando garfo e faca e guardanapo no pescoço. Comer sentado permite também apreciar melhor a composição dos pratos —certificando-se de que não há uma acidental minhoca na salada— e olhar nos olhos da pessoa à frente. 

Hoje ficou proibido entrar em museus, bibliotecas e igrejas portando sanduíches e bebidas. Mas, até então, mais de uma Bíblia de Mogúncia, de 1462, foi corrompida pela mostarda que escorreu de algum cachorro-quente sobre ela. 

Há uma tese segundo a qual o que se come em pé na rua não conta em termos de calorias. Não caia nessa —foram as redes de cheeseburgers que a inventaram. As mesmas que nos convenceram de que seus produtos eram para comer. 

Homem come cachorro-quente na rua
Homem come cachorro-quente na rua - Rivaldo Gomes/Folhapress

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