Sergio Firpo

Professor de economia e coordenador do Centro de Ciência de Dados do Insper

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Sergio Firpo
Descrição de chapéu Auxílio Brasil

Quem tem fome no vale-tudo político

Presidente do Ipea faz previsões para o pós-pandemia a partir de dados pré-pandemia

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No dia 17 de agosto, um dia após o início da campanha eleitoral, o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Erik Figueiredo, apresentou em entrevista coletiva no Palácio do Planalto uma avaliação preliminar de sua autoria sobre a expansão do programa Auxílio Brasil.

O estudo havia sido publicado no site do Ipea dias antes. Suas conclusões foram rapidamente adotadas pela campanha de Jair Bolsonaro, que passou a alardear que no Brasil, na contramão do resto do mundo e graças ao Auxílio Brasil, a taxa de pobreza em 2022 teria caído de 6% para 4,1%.

Além disso, o estudo coloca em dúvida o aparente aumento da insegurança alimentar e da fome, apontando que os indicadores de saúde relacionados à má nutrição melhoraram entre 2015 e 2021.

Seria ótimo se o estudo estivesse correto, mas, infelizmente, não é esse o caso.

Mulher segura bebê, tendo adolescente e idosa ao fundo. Geladeira branca, aberta, está praticamente vazia.
Família da favela de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, sem quase nada na geladeira, recebe doação de marmitas. - Marlene Bergamo/Folhapress

Ao contrário da prática tradicional, os números da pobreza não foram calculados diretamente a partir das pesquisas do IBGE, já que a PNAD Contínua Anual para 2022 só será divulgada ano que vem.

Os números da presidência do Ipea são estimativas obtidas a partir de um modelo estatístico baseado em dados agregados por unidades da federação entre 2012 e 2019.

Ou seja, trata-se de uma previsão para o pós-pandemia a partir de informações pré-pandemia.

Só isso já deveria ligar o sinal amarelo, dadas as mudanças abruptas no mercado de trabalho e a reformulação das transferências sociais. No entanto, os problemas com o estudo são ainda mais graves.

O texto parece feito às pressas e contém erros e confusões inaceitáveis para um trabalho sobre tema tão importante: há erros na descrição do próprio modelo usado para estimar a pobreza, que aparece em duas versões muito distintas, e o trabalho é tão descuidado que sequer menciona o básico –o valor da linha de pobreza adotada.

O autor comete outros erros técnicos rudimentares, os quais descrevo brevemente neste parágrafo, já me desculpando pela excessiva tecnicalidade. Primeiro, o método de estimação dos parâmetros produz viés (ao usar um painel dinâmico com efeitos fixos sem variáveis instrumentais, o que gera viés, por construção, como nos ensinam Arellano e Bond, 1991).

Em seguida, mesmo que os coeficientes reportados fossem os corretos, eles levariam a uma previsão do impacto do Auxílio Brasil sobre a redução da pobreza diferente da reportada. O que ele estima é uma elasticidade: para cada 1% de aumento no número de famílias atendidas haveria redução de 0,598% na pobreza.

Pelos dados do estudo, houve em 2022 um aumento de 5,7 milhões de famílias atendidas sobre uma base inicial de 14,4 milhões, ou seja, um aumento de 39,6%. Logo, o aumento de cobertura do Auxílio Brasil reduziria a pobreza, de acordo com os resultados do estudo, em 23,7%. Saindo de uma base de 6% de pessoas abaixo da linha de pobreza, essa redução levaria a que a nova proporção de pobres fosse de 4,6%. Ele reporta 4,1%. Uma diferença de 1 milhão de pessoas.

Mas o que sabemos, então, sobre a pobreza extrema?

Os números são desanimadores: para todas as linhas de pobreza mais utilizadas, o Brasil estava pior em 2021 do que em qualquer outro momento desde o início da série histórica em 2012. Para a linha de referência do Banco Mundial (próxima a R$ 180 mensais por pessoa), os dados do IBGE mostram que a pobreza subiu de cerca de 6% em 2020 para mais de 9% em 2021.

Dado esse patamar tão elevado da pobreza em 2021, é muito provável que a recuperação do mercado de trabalho e a expansão das transferências estejam já provocando a redução da pobreza neste ano. Mas só saberemos disso com segurança quando os dados estiverem disponíveis. É preciso respeitar o tempo próprio da geração de evidências.

Estudos apressados e malfeitos tumultuam o debate público e tiram credibilidade do trabalho de técnicos e acadêmicos. Com tantos estudos sendo produzidos, em quais deles devem os formuladores de política pública se guiar?

A reputação de uma instituição de pesquisa como o Ipea é um primeiro filtro importante. Afinal o Ipea possui técnicos muito bem treinados, que formam um time de padrão de excelência mundial. Mas se nem no Ipea se puder mais confiar, por que os governantes se preocupariam em usar estudos técnicos para formulação de políticas públicas?

Sempre haverá políticos dispostos a distorcer a realidade para obter o poder, mas o nosso papel como pesquisadores é o de ajudar a manter a sobriedade e até a sanidade do debate público.

Se o prestígio da pesquisa acadêmica virar moeda de troca no vale tudo político, nós rapidamente mancharemos nossa legitimidade e, no longo prazo, a democracia e o desenvolvimento do Brasil sairão perdendo.

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