Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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A vacina, a vaca e o brejo

O bolsonarismo renovou nossa linguagem figurada de inspiração bovina

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A vacina nasceu da vaca e dela se distanciou a ponto de ficar irreconhecível, mas o bolsonarismo conduziu as duas palavras a um reencontro inesperado.

O boicote federal à imunização contra o coronavírus, corolário do negacionismo de Bolsonaro diante da pandemia, começa a testar a fidelidade de seus apoiadores incondicionais, aqueles que os críticos gostam de chamar de gado.

Uma coisa é aplaudir o presidente quando ele diz que a Covid é só uma gripezinha, quando nega ter dito o que disse ou quando manda o Exército fabricar cordilheiras de um medicamento inútil.

Bem diferente é ver o mundo entrar na vacina para sair da pandemia e a gente aqui pastando, entre prazos de 60 dias e seringas que o “especialista em logística” se esqueceu de comprar.

Trata-se de uma simples coincidência de imagens pecuárias. Com ou sem vacina, o gado é uma velha metáfora da massa humana politicamente manipulável, que vai para onde a tange o boiadeiro —mesmo que seja para o abatedouro.

Esse simbolismo tem muita força num país que era majoritariamente rural até outro dia mesmo —meados do século passado. Como cantou Zé Ramalho em 1979, “povo marcado, povo feliz”.

A expressão “curral eleitoral” dá corpo à metáfora. Nasceu mais literal do que muita gente imagina, como nome dos locais onde os eleitores arrebanhados pelo chefe político da área aguardavam a hora de ir votar em bloco em quem o cara mandasse.

Quem quiser entender exatamente como funcionava um curral eleitoral, e de resto uma eleição “democrática” no Brasil dos grotões (que ajudou a formar o de hoje), dificilmente encontrará aliado melhor do que o romance “Vila dos Confins”, de Mário Palmério (1916-1996).

Estou empregando o tempo passado para falar de currais eleitorais porque, em seu modo clássico, o coronelismo ficou para trás. Contudo, as sequelas daquele atraso se fazem presentes hoje com a eloquência de um bezerro gritando “mamãe”.

A associação da vacina com o gado é de tipo bem diferente do político, baseada numa metonímia precisa. Em fins do século 18, o médico inglês Edward Jenner começou a imunizar seus pacientes contra a varíola inoculando neles a secreção das vesículas que brotavam nas tetas de vacas com varíola bovina —mais branda do que a nossa.

Era tosco, mas era uma vacina, maravilha médica que perderia completamente o cheiro de esterco no século 19. Do latim científico “variola vaccina”, isto é, varíola de vaca, o francês tirou o termo substantivado “vaccine” e o exportou para o mundo.

Muito além da vacina e da política, nossa linguagem está cheia de referências a bovinos. A vaca está indo para o brejo, é fato, mas sempre se pode arranjar um boi de piranha. Não concorda, vai pastar!

O tempo é de vacas magras. O sujeito precisa ser um touro para aguentar, do tipo que dá um boi para não entrar na guerra e uma boiada para não sair. Vaquinha de presépio, para se criar, só tirando leite de pedra.

O gado vacum surge associado até à grana. No Brasil fazemos vaquinhas —em alguns países latino-americanos, “vacas”— com o sentido de juntar coletivamente uma quantia para fazer frente a determinado gasto.

O adjetivo “pecuniário” (relativo a dinheiro) é parente de pecuária, ambos derivados do latim “pecu”, gado. A riqueza de alguém se media pelo número de cabeças que tinha no pasto. Na luta pelo poder, em sua modalidade populista, ainda é assim.

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