Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Caçadores de precárias sínteses

Dois livros, um de 1945 e outro de 2021, ajudam a iluminar nossas trevas

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“Visito os fatos, não te encontro./ Onde te ocultas, precária síntese”, pergunta Drummond no magnífico poema “Nosso tempo”, de “A Rosa do Povo” (1945).

Naquele que para muitos é o melhor livro de Carlos, a guerra reverbera com uma urgência e um sentido trágico —até mesmo de inviabilidade da espécie— que ecoa no Zeitgeist do presente.

“Símbolos obscuros se multiplicam./ Guerra, verdade, flores?/ Dos laboratórios platônicos mobilizados/ vem um sopro que cresta as faces/ e dissipa, na praia, as palavras.”

Mais do que o sentimento apocalíptico, o que conecta as duas leituras de “Nosso tempo” —a de 1945 e a de 2021— é o fracasso da linguagem.

Onde andará a precária síntese? Diante da mortandade excessiva, em parte impune, “visitar os fatos” não permite sequer a precariedade de todo ato de linguagem.

Verdade? Pós-verdade. Efeito sem causa. Lógica conspiratória multiplicando símbolos obscuros. Palavras ao vento.

Como nomear Bolsonaro e seu ofício de morte com termos que não se esfarelem diante do indizível, se até nosso instinto de sobrevivência foi avariado?

No poema, “o ar da noite é o estritamente necessário/ para continuar, e continuamos”. Menos os que, sem oxigênio, não continuam, enquanto multidões embalam o vírus numa ciranda suicida e imbecil.

E eis que Fachin dá um bico no tabuleiro, tornando tudo mais excitante, ainda que mais difícil de decifrar. Onde te ocultas, precária síntese?

Reencontro os versos de Drummond na primeira página de “Guerra Cultural e Retórica do Ódio” (Caminhos), livro de João Cezar de Castro Rocha sobre o bolsonarismo.

Crítico literário, Castro Rocha submete o presente imediato a um discurso ensaístico que busca apreender seu arco narrativo mais amplo —talvez aquele em que a esfinge seja mais indecifrável e devoradora.

Embora o autor enfatize com alguma insistência a modéstia do empreendimento, a ambição do livro é tão grande que chega a relativizar a ideia de fracasso.

Castro Rocha publicou um panfleto político no melhor sentido da expressão: uma peça de reflexão a quente que escancara —até no tom dialógico às vezes meio forçado— a ânsia de persuadir, dissuadir, fazer diferença no jogo.

Houve um tempo em que os chamados “intelectuais públicos” escreviam livros assim. Esse tempo parecia ter passado.''

Se não encontra uma síntese precária única, “Guerra Cultural...” toca em diversas delas, traçando um caminho plausível por quatro décadas de história do Brasil.

O traçado leva do ressentimento cultivado no Exército desde a redemocratização ao trator político e cognitivo do bolsonarismo, passando pelos delírios paranoicos do olavismo e pelo estupor arrogante da esquerda.

Talvez a melhor síntese precária do livro seja um achado que Castro Rocha martela em múltiplas variações: “O êxito do bolsonarismo significa o fracasso do governo Bolsonaro”.

O autor explica: “Sem guerra cultural, como manter as massas digitais mobilizadas em constante excitação? Contudo, a guerra cultural, pela negação de dados objetivos (...), não permite que se administre a coisa pública”.

Touché: o tipo de precária síntese que ilumina longe. Que seja medido em centenas de milhares de cadáveres deve muito ao azar, mas o fracasso —mesmo em seus próprios termos— é uma vocação inscrita no código genético do governo Bolsonaro.

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