Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Os cem dias de Lula vistos daqui

Falar da língua é mais fácil quando Brasília não promove o genocídio indígena

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Proponho um balanço pessoal de cem dias do governo Lula.

Correndo o risco do umbiguismo, aposto no arquivo da coluna como guia para um sobrevoo deste primeiro período de reconstrução nacional.

Eu estava de férias quando os golpistas de Bolsonaro quebraram Brasília no infame 8 de janeiro. Ao voltar ao trabalho, aquela triste massa de manobra estava presa, ainda que quase todos os líderes do golpe frustrado continuassem livres.

Isso me permitiu escrever sobre um episódio das férias em que a jovem garçonete de uma churrascaria tinha usado a palavra "hemoglobina" para se referir a uma picanha na faixa de vermelhidão que chamamos "ao ponto pra mal".

Concluí que a tendência atual de, em nome da saúde, tratar a comida apenas por seu valor bioquímico, privando-a de significados culturais acumulados por séculos, não vai acabar bem.

Na semana seguinte, tratei dos clichês, tanto os contemporâneos quanto os clássicos. A manobra arriscada foi falar do tema num texto que era um compêndio de clichês. Isso só foi possível, claro, porque já não havia ninguém em Brasília trabalhando pelo genocídio indígena.

Seguiu-se um elogio ao livro "Latim em Pó" (Companhia das Letras), de Caetano Galindo, uma história saborosa do português brasileiro que desde então se tornou fenômeno editorial. Enquanto isso, ninguém no Ministério da Educação se empenhava em vomitar barbarismos e cortar verbas.

De repente estávamos em março, mas a proximidade do fim do verão não trouxe alívio térmico. Na verdade, a pauta da coluna esquentou com uma discussão sobre o mal que o descompromisso com a verdade histórica faz à luta antirracista quando inventa crimes para palavras inocentes, como criado-mudo. Vale lembrar que o governo já não boicotava vacinas.

As semanas seguintes testemunharam uma questão gramatical, o uso equivocado e comum da expressão "tratar-se de" com sujeito, e outra de vocabulário, a provável extinção do verbo coruscar. E não se viu nenhum artista ser demonizado.

A mistura de tratamento que o português brasileiro adora ("você sabe que eu te amo") foi o tema da quarta coluna de março. Lembrei que em Portugal embaralham "vocês" e "vós" –e ninguém acha que isso abale os alicerces da civilização lusófona. A transformação de cidadãos comuns em justiceiros armados, fábrica de milícias, já não era um plano de governo.

Só então Bolsonaro voltou a aparecer na coluna, no papel de afanador de bens públicos: a crônica "O rato, o gatuno e o ladrão de joias" partiu do caso de polícia dos estojos sauditas para refletir sobre a etimologia de certos sinônimos populares de ladrão.

E assim chegamos à semana passada, quando a "norma curta" e sua ênfase no ensino de português como decoreba de regrinhas bestas foram acusadas de corresponsáveis por nossos vexaminosos índices de leitura e compreensão de texto. Nenhum milico foi chamado a opinar sobre o problema.

Eis o meu balanço de cem dias do governo Lula. Com seus erros e acertos, em momento algum ele me distraiu do trabalho de refletir sobre os incontáveis pontos de contato entre a língua que falamos e a vida que vivemos.

Isso só é possível quando se tem um governo normal –nem importa tanto se de esquerda ou de direita, desde que seja civilizado. Naturalmente, torna-se difícil ou mesmo impossível quando a turma no poder se dedica ao terrorismo de Estado. Que venham muitos cem dias como esses.

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