Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Dicionário que não se atualiza morre

Por outro lado, acolher novidades exige bastante cuidado

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Leio na imprensa portuguesa que o grande dicionário em dois volumes da Academia das Ciências de Lisboa acaba de incorporar um novo lote de palavras "que passaram a fazer parte do léxico português", entre elas criptomoeda, metaverso e podcast.

Essas palavras não são novas no universo lexicográfico da nossa língua: mesmo em Portugal, onde é maior o apego à tradição, o excelente dicionário digital Priberam, por exemplo, já traz todas elas há algum tempo. A notícia vale pelo peso institucional da obra em questão.

De todo modo, trata-se de uma boa oportunidade para refletir sobre o papel dos dicionários na fixação de um vocabulário, digamos, chancelado, oficial, em meio à bagunça infinita que é uma língua real, máquina incansável de produzir sentidos e de gerar palavras –e também de matá-las pelo desuso.

O assunto foi tratado na coluna há pouco tempo, a propósito da introdução pelo dicionário Michaelis –muito divulgada e um tanto desajeitada– do verbete "pelé" como substantivo comum e, bizarramente, como adjetivo também.

Nunca é demais enfatizar os riscos do conservadorismo nesse caso. Dicionário que fica parado cai na obsolescência, vira curiosidade de sebo. Essa lei existe desde sempre, mas é provável que a revolução digital esteja tornando o ritmo das atualizações cada vez mais veloz.

Decorre daí que a lexicografia precisa ser mais rigorosa, não menos. Se é sábio fugir do apego reacionário a convenções de anteontem, deve-se ter cuidado para não cair no abismo oposto, o das jogadas novidadeiras de apelo midiático.

Antes de "pelé", talvez o Michaelis devesse ter entronizado entre seus verbetes palavras de uso mais corrente –e importantes para a compreensão do mundo contemporâneo–, como metaverso e criptomoeda, a exemplo do que fez o dicionário da Academia de Lisboa.

Ao não fazer isso, vai recuando para o fim da fila. Antes do concorrente lisboeta, já tinham chegado lá tanto o Houaiss quanto o Vocabulário Ortográfico (Volp) da Academia Brasileira de Letras.

Estes trazem ainda o terceiro substantivo destacado como novidade na notícia portuguesa, podcast (com recomendação de grafia em itálico, por ser palavra da língua inglesa não adaptada). Reconheça-se, contudo, que neste caso o Michaelis está na mesma página também.

Nem sempre um ouvido muito apurado para a proverbial "fala das ruas" é bom conselheiro. Veja-se o caso de uma gíria brasileira cunhada pela publicidade, "boko-moko", cruzamento de cafona com abestalhado, que fez algum sucesso em 1970 impulsionada por um comercial televisivo de guaraná.

O sucesso foi breve, logo boko-moko virou gíria de época e, em algum momento dos anos 1980, peça de museu. O verbete do Houaiss, com a grafia "bocomoco" e a definição "indivíduo bobão, esquisito, fora de moda", menciona as marcas de sua condição: brasileirismo, informal, obsoleto. Mas resta a sensação de que a palavra nem devia estar ali.

Incomparavelmente mais vivo, funcional e consagrado na língua do dia a dia, tudo indica que o brasileirismo "bateção" chegou – e faz tempo – para ficar. Mesmo assim, ainda não mereceu do Houaiss a honra concedida a "bocomoco".

Nisso, ora veja, o Michaelis pulou na frente. Lá está: "bateção – ação repetida de bater". O Volp lhe faz companhia. Enquanto a língua desfila suas metamorfoses diante de nossos olhos, a bateção de cabeça no mundo dos dicionários é um espetáculo à parte.

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