Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Eleita a palavra do ano, 'rizz' é gíria com pinta de descartável

Se não estivéssemos em um ano como o que termina, a futilidade seria passável

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Está rizz de quê? Não tem graça nenhuma que o dicionário Oxford tenha escolhido uma gíria internética recém-nascida como Palavra do Ano: "rizz", forma abreviada de "charisma" (carisma), uma das novidades que calharam de viralizar em 2023.

Se não estivéssemos falando de um ano como o que termina, em que os ponteiros do relógio do apocalipse aceleraram de forma inequívoca, talvez a futilidade fosse passável. Enquanto as bombas israelenses subtraem Gaza do mapa, a IA começa a tornar obsoleta a mão de obra humana e as calotas polares derretem –aí é outra conversa.

Todos sabemos que o escapismo, o hedonismo e o oba-oba diante da catástrofe são velhos conhecidos da humanidade. Isso não obriga ninguém a, como diz o outro, bater palma pra maluco dançar.

Tradição midiática da língua inglesa que o Oxford abraçou em 2004, a escolha de palavras do ano nunca teve grande importância no debate público. No entanto, costumava exibir um certo carisma e alguma preocupação em iluminar a realidade por meio de vocábulos em evidência.

Casaco "Charisma"
Chris Yang na Unsplash

Sua decadência é sintoma de mudanças profundas no modo de funcionamento do mundo. Há uma razão para que, pela segunda vez consecutiva, o mais prestigioso dicionário da principal língua contemporânea eleja como palavra-síntese do ano um modismo digital com pinta de descartável.

Em 2022, como ninguém deve se lembrar, o título coube à locução "goblin mode" –em tradução literal, "modo duende". Segundo definição do próprio dicionário, um estado de espírito em que se rejeitam "as expectativas que a sociedade deposita sobre nós, em favor de fazer o que se quiser". (Inserir aqui um emoji de olhos arregalados.)

A explicação é que, desde o ano passado, está terceirizada para o voto popular uma escolha que até então era feita por um grupo de linguistas e lexicógrafos. Eis o modo mais garantido –e covarde– de trocar conhecimento por populismo.

Pobre Oxford. Como todo mundo hoje em dia —pessoas físicas e jurídicas, sem nenhuma exceção para instituições centenárias—, é claro que se sente refém das caprichosas redes e seus memes. Esmerando-se em bajulá-las, tenta escapar da morte ou pelo menos retardar sua agonia.

Nessa democracia digital direta, podemos ter certeza de que sua palavra do ano jamais voltará a tocar em nervos expostos como fez em 2007 ("pegada de carbono"), 2016 ("pós-verdade") e 2019 ("emergência climática").

Não deve repetir nem mesmo a elegância de suas tentativas anteriores de piscar para os novos tempos, como na eleição de "selfie" em 2013 e na de um signo não verbal, o emoji que chora de rir, em 2015.

Comentando há dias a escolha de Taylor Swift como Pessoa do Ano da revista "Time", meu colega de Folha Tony Góes observou com razão haver ali "algo de ganancioso e covarde": "A edição impressa da revista sairá com quatro capas diferentes, na esperança de que os ‘swifties’, os fãs ardorosos da artista, comprem todas".

Taylor Swift, escolhida a Pessoa do Ano pela Time - Inez e Vinoodh/ Time via Reuters

Não sei se tal objetivo comercial foi atingido, mas o paralelo com o caso "rizz" é claro. Esnobado pelas novas gerações, um representante do Ancien Régime da comunicação se ajoelha diante dos jacobinos, se não para esgotar tiragens, para convencê-los de que tem "rizz". Quem sabe assim o poupam da guilhotina.

Ao se curvar à lógica das redes, o dicionário Oxford acaba por abalar um dos pilares que o sustentam: a compreensão das palavras como veículos de pensamento crítico.

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